10.3.07

Resposta da Aline ao Desafio XIX

Fado Tropical

“Les français expliquent même ce qu’ils sont incapables de ressentir, les brésiliens ressentent même ce qu’ils sont incapables d’expliquer.”




“Mamãe, a senhora conhece algum fado?”

A mãe de Adeline não esperava a pergunta. Sua reação foi virar a página do caderno de política e dizer, em tom definitivo, “não”.

O problema é que Adeline conhecia a mãe há dezesseis anos, e portanto não se deixava vencer facilmente. “É para o liceu, mamãe. Vai, você deve conhecer alguém que tenha um disco de fado.”

“Não, não conheço. Pergunte ao seu pai.”

“Ele vai passar o dia todo em entrevistas de emprego. Não vai dar tempo.”

“Você deixa os trabalhos pra em cima da hora... já tentou a Internet?”

“O único site que eu achei tava com os links quebrados.”

“Tentou achar uma partitura na biblioteca?”

“Mamãe, é domingo à tarde em período de provas. Todo mundo deve ter saído da praia e ido pra lá.”

A mãe de Adeline também conhecia a filha há dezesseis anos, logo sabia o quão insistente a garota podia ser. Desistiu de ler o jornal e deu um longo trago no cigarro. “Por que você cismou com isso, afinal?”

A menina sorriu. Sabia quando podia cantar vitória. “É pro liceu, já disse. A gente tem que fazer um trabalho sobre as diferentes culturas que influenciaram na criação da identidade nacional.”

“Pensei que você já tivesse feito isso no primário.”

“Naquela época era só colar as penas no cocar do indiozinho, mamãe.”

A mãe balança a cabeça. “Certo. E você vai falar dos portugueses.”

“É que esse ano é o bicentenário da Guerra da Península”, disse a garota, agitando no ar um exemplar caindo aos pedaços de Histoire de France-Brèsil, volume quatro. “Eu achei que seria legal.”

“E por que precisa ter um fado?”

“Apresentação conta ponto.”

“Leve bolinhos de bacalhau pro professor.”

“A Anne-Marie já tá levando tapioca. Vai parecer que eu copiei.”

Suspiros de mãe e filha. A menina põs-se a bater com a ponta de um dos pés no chão, enquanto sua mãe fumava para ajudar a pensar. “O que você já tem?”

A menina deixa o livro depenado em cima da mesa e abre o caderno de anotações de História, tentando entender a própria barafunda de letras. “Já li tudo que havia para ler sobre Napoleão, sobre o tratado de Fontainebleu, sobre a invasão de Lisboa, sobre a prisão da corte e a execução de Dom João, sobre a guerra Franco-Espanhola pelas Américas, sobre—”

“Chega, chega, já entendi.”

“—Mas tem umas coisas que eu ainda não entendo. Por exemplo: por que diabos Dom João foi insistir em ficar em Lisboa? Sabia que os ingleses tinha até um pacto de proteger a fuga de toda a corte portuguesa pra França-Brasil?”

“Na época era só Brasil.”

“Ou isso.”

“Bom, convenhamos, isso seria um tanto covarde da parte de Dom João.”

“Covarde? E entregar todo o Império Português de mão beijada é o quê?”

“Naqueles tempos as pessoas valorizavam mais o conceito de honra, chérie. E ele provavelmente esperava que seus amiguinhos ingleses desse um jeito no problema.” A mãe de Adeline não gostava de ingleses.

A menina anotou rapidamente o que a mãe disse, ainda que insatisfeita com a explicação. “Outra coisa. O exército francês já não tinha desistido da América do Sul? Por que abrir mão de metade do Canadá para disputar o Brasil com os espanhóis?”

“Oras, mas essa é muito fácil. Já viu o clima do Canadá?” A mãe de Adeline também não gostava muito de canadenses.

“Mas o tratado de Fontainebleu dizia que as colônias portuguesas na América ficariam—”

“Com quem fosse mais forte. Napoleão não ia simplesmente seguir um tratado. Guerra é guerra, e eles estavam por cima, de qualquer forma. Olhe em volta: um país sem neve, sem desastres naturais, com água potável pra dar e vender, praticamente abandonado pelos portugueses? Por que você acha que a fronteira com Tocantins dá problema até hoje? Os chicanos querem o Atlântico de qualquer maneira.” Acima de tudo, a mãe de Adeline não gostava de espanhóis.

“Eu pensava que fosse por causa do tráfico de drogas, mamãe.”

“Você acredita em tudo que sai nos jornais”, a mulher resmungou, esmagando a guimba de cigarro no cinzeiro. “Olha, já que você está assim tão curiosa com a invasão francesa, por que não tenta escrever uma redação?”

“Mamãe...”

“Não, vai ser divertido. Você é ótima pra inventar histórias, escreva uma em que Dom João foge pro Brasil e os franceses nunca vêm pra cá.” Adeline tinha certeza de que aquilo na voz da mãe era sarcasmo, mas não se importou. O pior de tudo é que a idéia era boa, mas ia exigir ainda mais pesquisa – e o volume quatro de Histoire de France-Brèsil parava na Guerra do Mato Grosso de 1902.

“Tenho que ir na biblioteca, de qualquer jeito.”

“Não, espere”, disse a mãe, levantando e pegando as Pages Jeunes. “No centro da cidade tinha um... ah, aqui: o prédio do Instituto de Estudos Portugueses. Eles tinham uma biblioteca na época em que seu pai estava fazendo mestrado. Melhor pegar aquele ônibus expresso, porque eles fecham às seis.” O pai de Adeline não gostava que ela pegasse o ônibus expresso, por que ele passava bem na avenida onde volta e meia botavam fogo em alguma coisa. A mãe de Adeline, por mais que reclamasse da falta de engajamento da filha, também se preocupava; mas naquela época os estudantes provavelmente estavam pondo fogo nos carros na frente da prefeitura, por causa da crise do Secretário de Segurança.

Adeline não se importava nem um pouco em pegar o ônibus expresso, contanto que isso significasse um boletim impecável. Pegou o caderno de anotações, o passe pro ônibus, deu um beijo na mãe e foi.


O prédio, num sobrado cor-de-vinho-desbotado, era pequeno e tinha cheiro de comida. A comunidade portuguesa costumava fazer uma confraternização ali no almoço de domingo; o almoço já havia acabado, mas alguns gatos pingados ainda ficavam ali petiscando e falando sua língua apressada. O porteiro indicou para Adeline o caminho da biblioteca, sugerindo que ela apertasse o passo.

A biblioteca era minúscula, ocupada quase em sua totalidade pelas estantes cheias até o teto. Adeline perguntou sobre os livros de história contemporânea, explicando rapidamente o objetivo do trabalho. A bibliotecária de rosto redondo lhe indicou uma das últimas fileiras, acrescentando “tens coisa de uma hora” num sussurro com sotaque carregado.

Adeline folheou alguns livros. As guerras foram poucas; não faz sentido lutar quando já não se tem muito. Passou os olhos numa série de revistas sobre o movimento de preservação da história e dos costumes portugueses, e xingou silenciosamente a Anne-Marie enquanto conferia as fotos do livro de receitas de doces do Porto. Seus olhos volta e meia caíam sobre a lombada de uma versão traduzida da Enciclopédia Luso-Brasileira. Tomou nos braços o pesado volume encadernado em couro, abrindo numa página aleatória. Caiu justamente no verbete “Fado”, que continha um breve histórico do ritmo, descrição da indumentária dos fadistas, a diferença entre o Fado de Lisboa e o de Coimbra e um trecho de uma letra famosa.

O parágrafo sobre temas a redirecionou para o verbete “Saudade” – que ela sabia ser uma palavra intraduzível da língua portuguesa, com um significado diferente da nostalgie francesa ou mesmo da soledad espanhola. Algo lhe disse que a resposta de seu trabalho estava ali, naquelas três sílabas; talvez tenha sido a sensação inexplicável em seu peito enquanto lia a história de Portugal contada através da história da palavra saudade, tão intrinsecamente portuguesa e tão secretamente brasileira. Sentiu-se triste, como se lhe faltasse algo que ela não sabia bem o que era; e ainda que não soubesse a razão da súbita vontade de chorar, imaginava que aquele sentimento era comum a seu pai, aos seus avós, à bibliotecária, às pessoas reunidas no salão do andar de baixo.

Quando a moça de rosto redondo veio avisá-la da hora, ela sabia sobre o que escreveria. Sem querer, entendera porque Dom João optara pela morte junto de seu povo. Não fora um ato de bravura; não, pelo contrário, foi pelo medo imenso daquilo que sentiria estando longe de sua terra, sem saber ao certo quando (ou mesmo se) voltaria. A última questão que faltava responder, ela teria que inventar sozinha. Como seria um Brasil sem as tropas de Napoleão? Ninguém sabia. Mas ela arriscava que fosse uma terra com mais poetas e menos mestres, mais sonhadores e menos filósofos. Um país mais doce, embora mais ingênuo; mais intenso, embora mais vulnerável. Mais amado, embora mais sofrido.



Fato Histórico Alterado: Em 1807, encurralado pelo exército de Napoleão, Dom João VI recusa a proposta inglesa de fuga para o Brasil e permanece em Lisboa. Com isso, Napoleão toma Portugal e divide com a coroa espanhola todas as colônias portuguesas, de acordo com o Tratado de Fontainebleu (que realmente existiu, mas nunca pôde ser cumprido).

5.3.07

Resposta da Mônica ao Desafio XIX

Os Últimos

“Que furor consentiu que a espada fina,
Que pôde sustentar o grande peso
Do furor Mauro, fosse alevantada
Contra huma fraca dama delicada?”
Luís de Camões, Os Lusíadas. Canto III

A lama e a escuridão daquela noite não impediam a carruagem de dirigir-se à toda pressa para o sul. Dois pares de cavalos negros galopavam com tamanha fúria que não hesitavam em mergulhar suas patas na terra fofa e encharcada pela chuva incessante e torrencial. A urgência e o perigo, os inimigos que certamente estavam somente a algumas léguas de distância, faziam com que o último servo fiel que guiava a condução não tivesse piedade ao atiçar os pobres animais com o chicote de couro que trazia consigo. Teriam descanso no porto, quando os senhores já não correriam mais risco de vida.

Adentravam a floresta, e aí as patas dos cavalos começaram a sangrar, machucadas pelos galhos pontiagudos perdidos nas folhagens. Ficavam mais lentos, à sua forma reclamavam da dor, mas o chicote não os permitia parar e, lutando com todas as forças, os quatro equinos prosseguiam mato adentro. A lua iluminava o caminho, mas o vento que balançava as árvores fazia as sombras dançarem em meio à floresta, como se estivessem abrigando o inimigo que espreita e espera a melhor hora para atacar.

Observando tudo com olhos muito abertos, justamente à procura do menor sinal desse inimigo invisível, Inês pensava que aquilo era o preço que deveria pagar. O medo tomava conta dela, não por si mesma, mas pelos seus filhos. As crianças dormiam, apoiadas nos ombros umas das outras, insensíveis à morte que as perseguia, e as alcançaria se aqueles cavalos não fossem cada vez mais rápidos. Olhou para elas com aquela típica preocupação de mãe, ajeitou o pescoço de uma, o braço de outra e a mãozinha da terceira, para que tivessem um sono um pouco mais confortável. Afinal, sabia que a rapidez com que a fuga fora planejada cansou-as um bocado. Amava-as mais que tudo, elas faziam-na crer que valera a pena afrontar a coroa portuguesa, a aliança tão instável com Castela e o próprio rei pessoalmente.

Voltou seus olhos para Pedro, e também se preocupou com ele. Viu o mesmo olhar inquieto, procurando na escuridão qualquer sinal de qualquer coisa. Sua admiração por ele crescia a cada minuto, desde o dia em que, ainda como aia da futura rainha, ela o viu pela primeira vez. A viagem de Castela a Portugal tinha sido muito penosa, e ela confessou para si mesma que, à primeira vista, não tinha simpatizado, ou sequer prestado atenção em sua figura. Mas o seu caráter era apaixonante. Lembrou-se da primeira sensação de distância, de como ele era algo inatingível, e depois da admiração e do amor, o primeiro toque de mão, o primeiro beijo, a primeira noite. A dor de vê-lo se casar com outra, ainda que fosse por mera política. A certeza de que ela, Inês, era muito mais do que favorita do futuro rei, era a princesa de fato e de direito. Felizes aqueles dias em que foram construídas, acima dos poderosos daquela terra, as bases do amor sólido, pelo qual estava disposta a tudo.

Não pôde impedir que uma lágrima rolasse pelas suas bochechas ao lembrar do exílio. Pedro a observou, preocupado, perguntando se estava tudo bem. Por um momento, os pensamentos de Inês foram interrompidos. Voltara àquela carruagem, correndo em fuga ao sul de Portugal. Não o respondeu: simplesmente olhou-o com admiração e respeito. Abandonara o trono por ela. Matara o próprio pai quando descobriu o plano dele para assassiná-la. Iniciara uma guerra civil por sua causa. Perdera, e agora fugia com ela. Rompera a aliança com Castela por ela. Enfrentou a invasão dos castelhanos, deixara o reino perdido no caos completo, porque, para ele, não havia trono nem poder que a substituísse. Inês admitia agora: no lugar dele, talvez não tivesse tal coragem.

Ainda em silêncio, estendeu ao marido uma pequena bolsa de couro e fios de ouro: as cartas. A vasta correspondência que trocaram quando fora expulsa da corte por Afonso IV. O amor deles gerava o ódio da casa real. Começaram as intrigas palacianas, a nobreza instigando a fúria do rei, levando-o a conceber sua morte e de seus filhos. Afinal, “não poderia restar nenhum bastardo de sua linhagem sobre a face da terra”! Recordava agora a fúria com que tomara conhecimento de tal plano através de um dos lacaios do rei, um primo distante que nutria certa paixão por ela. E seu maior erro foi ter contado tudo a Pedro.

Nunca o vira naquele estado. Sentia-se traído pelo próprio pai, arruinado, furioso. Subiu em um cavalo e correu ao Palácio Real. Voltou à Santa Clara no dia seguinte, afirmando que não haveria mais incômodo e que poderiam viver juntos agora. Ele era o novo rei. Mas Inês bem sabia que um suserano precisa ser reconhecido por seus vassalos e Pedro jamais foi aceito pelos nobres. A guerra foi inevitável, e inevitável também foi a derrota. A divisão da nobreza em duas facções acabou por trazer os castelhanos, que utilizaram da rejeição e morte da princesa Constança como pretexto para ocupar o trono português. E agora ela, Pedro e as crianças Beatriz, Dinis e João eram uma ameaça tanto interna quanto externa, e suas cabeças tornaram-se as mais desejadas da Europa.

Com a cabeça apoiada na madeira da carruagem, distante de tantas intrigas, Inês pensava agora que ter desafiado tanta gente fora uma pequena travessura, da qual ela estava escapando ilesa. Estavam quase chegando ao porto, e um navio os esperava lá para uma nova vida, aonde etiqueta e limites não eram conhecidos. Dentro de algumas horas, poderia viver com Pedro e seus filhos como uma família e deixar o pesadelo todo para trás. Que Portugal caísse, que aquela terra maldita fosse toda queimada pelos soldados de Castela, que todos os nobres morressem, ela não se importava: estavam livres de convenções, iam viver suas vidas longe dali.

Procurou as mãos de Pedro para transmitir-lhe o otimismo que se apoderava dela, mas, ao encontrá-las, percebeu que tremiam. Despertou rapidamente de seus sonhos de liberdade, notando que a carruagem estava mais lenta. Pararam por entre as árvores. Os amantes entreolharam-se: ambos queriam saber o que estava acontecendo, mas não ousavam cometer a imprudência de colocar a cabeça para fora. Apertaram-se as mãos com mais força. Ouviram o grito surdo do servo e, nesse momento souberam que haviam sido interceptados. O primeiro ímpeto foi o de saltar da carruagem e correr, mas sabiam que, além de não poder carregar três crianças consigo, seriam logo alcançados. Estavam perdidos.

A portinhola da carruagem foi arrombada com um pontapé, e o estrondo acordou os pequenos. Pedro e os dois meninos foram puxados para fora e jogados na lama, enquanto dois soldados entravam na carruagem. De lá, Pedro pôde ouvir o ruído de tecido cedendo misturado aos gritos de Inês e Beatriz, mas não podia fazer nada. Socos e pontapés o dopavam, e a raiva, por mais que tentasse, não lhe dava forças suficientes para enfrentar cinco homens fortes. Sentia-se inútil, não sabia se protegia seus meninos ou sua esposa e sua filha dentro da carruagem, e essa sensação de impotência doía muito mais do que qualquer agressão que pudesse sofrer.

De repente, os gritos cessaram. Os dois homens saíram da carruagem, e ele pôde ver Inês e Beatriz mortas, suas roupas rasgadas pela violência, o sangue escorrendo da jugular e gotejando, misturando-se com a lama. Ainda nesse mesmo momento, um dos soldados desembainha sua espada, e nela ele percebeu as armas de Castela. Portugal ruíra. E antes que pudesse derramar uma lágrima pela perda de sua casa, um golpe apagou qualquer comoção. Ao tombar, ainda viu pela última vez seus dois meninos. Não havia mais um rei, nem herdeiros, nem mais nenhuma ameaça. E a Espanha, sem empecilhos, poderia, enfim, triunfar em terras lusitanas.
Fato histórico alterado: A morte de Inês de Castro, dama galega que casou-se secretamente com o futuro rei Pedro I de Portugal, em 1354, quando ele ainda era o príncipe herdeiro. Ela foi morta a mando do monarca de então, Afonso IV (pai de Pedro), mas seus filhos permaneceram vivos. Quando ascendeu ao trono em 1357, Pedro I os legitimou e declarou Inês rainha póstuma de Portugal. O reinado de Pedro durou 10 anos, e foi marcado pela energia posta em vingar os assassinos de Inês.

25.2.07

Respostas da Mariana ao Desafio XIX

Academia


1° de maio de 1945

Reprovado. Pelo segundo semestre consecutivo, outra vez o papel timbrado com a prova de seu fracasso escrita em vermelho. O velho jargão diz que notícia ruim chega rápido, mas aquela custou outros seis meses. “É bom já ir me acostumando. Só faltava esse pra completar a coleção de fiascos, quero só ver o que virá depois. Ora, parabéns para mim!"

Pois parecia que não era adequado à universidade. Ou à vida como um todo, um observador mais atento diria. Não que não possuísse em si a vontade de mudar e crescer, mas sempre esbarrava na falta de oportunidades. Emprego não tinha mais há uns bons meses, foi demitido para redução de custos porque “a inflação está a cada dia mais cruel”. Suas roupas estavam velhas e pelo menos dois números abaixo do correto, mas não havia loja para gente comum, do povo; apenas boutiques para aqueles dispostos a pagar algumas centenas por roupas francesas contrabandeadas. Sentiu um formigamento no peito ao pensar nisso e olhou de novo o papel timbrado. Aquela palavra em vermelho sufocava-lhe o estômago, o que o fez lembrar do quão faminto estava. Ultimamente, não prestava atenção nisso. A fome era normal desde a grande humilhação. “É... parece que já sou um autêntico alemão! A imagem e semelhança do país...”

Resolveu procurar o que comer em algum bar, de preferência o mais asqueroso das redondezas. Uma vez que tinha parquíssimos marcos no bolso, devia que abstrair o asco pelo bem do estômago. Depois de passar por uma fila consideravelmente lenta de bêbados e mães cheias de filhos famintos, pediu uma caneca de leite com nata e uma fatia de pão. Seu descontentamento foi tremendo ao ouvir o balconista dizer que não poderia comer nada com aquele dinheiro naquele dia, apenas na véspera. Não foi tomado por surpresa, o que o preocupou ainda mais, visto que a desgraça já estava instalada nele como condição normal.

Era nessas horas que pensava nas conversas que tinha com uns colegas da universidade. “Será que eles estão certos? Será que o comunismo devolveria a dignidade ao nosso povo e o tiraria da miséria?? Mas, como arrumar recursos para promover a igualdade em um país tão arrasado como o nosso?

Continuou devaneando, sem perceber onde as pernas o levavam. Só acordou de seus pensamentos ao ser quase atropelado por um carro luxuoso e, quando deu por si, estava parado em frente à principal galeria de arte de Berlim, onde acontecia a inauguração de uma exposição com um título curioso: Adolf Hitler, a promessa madura da Academia de Viena.

Inexplicavelmente, o sangue subiu à sua cabeça. A visão daquelas pessoas soberbamente vestidas saindo de seus carros imponentes, a galeria que cheirava a luxo e o fato de a exposição ser de um austríaco quando muitos artistas alemães não tinham o que comer bateu como um soco na cara do rapaz; que tomou a atitude mais impensada de toda a sua vida

— Quem você pensa que é para entrar? — perguntou arrogantemente um dos guardas

— Sou um cidadão alemão e tenho o direito de assistir a uma exposição no meu país. Portanto, com licença.

Estava sendo impedido pelos guardas quando conseguiu se desvencilhar e adentrar o saguão da galeria. Os olhares marcados por relógios caros e jóias de brilhantes o perfuravam, mas ele ia determinado. A igualdade, as oportunidades e o orgulho saíam vibrantes de sua garganta, como se quisesse perguntar onde tinham se perdido na História do país.

Não podia ser diferente. Agarrado pelos guardas, teve que aceitar seu destino imediato: alguma cela de algum xadrez fétido, lotado de almas ousadas e desesperadas como a dele. A caminho da delegacia, seu estômago voltou a lembrá-lo da fome que sentia. Procurou consolar a si mesmo. Ao menos teria comida na prisão.


Promessa

1° de maio de 1945

Estava tudo pronto. Finalmente, os meses estafantes lidando com fornecedores, a burocracia infernal da alfândega e os eventuais problemas com falta de recursos (tão comuns no país desde a grande humilhação) se tornavam piada frente ao saguão do museu especialmente decorado, ao coquetel todo importado e ao prestígio que conquistava. Sim, era a exposição da sua vida.

Podia sentir o tenro sabor da glória em cada olhar de aprovação dos seus convidados, nos elogios efusivos de críticos entusiásticos e até no esmero com que as pessoas se haviam vestido para o vernissage. Sem dúvida, o dinheiro mais bem investido de toda a sua carreira e passaria à História por isso, não por sua famosa megalomania. Oh, como estava em êxtase consigo mesmo!

De repente, pensou no quanto aquilo tudo havia sido arriscado. O país estava em crise, era fato, e, ainda que isso não afetasse em nada a estabilidade dos Goldstein, era grande o risco de prejuízo de qualquer iniciativa cultural ousada naquela nação tão destruída e humilhada. Mais uma vez, nada que abalasse esse rico marchand. Se o povo estava rebaixado, que se devorassem para não morrerem de fome. Ele mesmo havia nascido ali, mas aquela nem era a pátria dos seus. De alguma forma, não pertencia.

Mas tudo isso era só detalhe. Não queria pensar em nada no dia em que seu artista austríaco conquistaria a crítica e a alta-sociedade alemã.

Lembrava como se fosse ontem do dia em que o conheceu. Estava como visitante na Academia de Artes de Viena e embasbacou-se com a intensidade sóbria das cores do professor Adolf Hitler. Embora um pouco passado da idade (tinha 56), suas pinturas ainda respiravam o frescor da perfeição de 40 anos atrás. Além disso, o tempo era seu aliado, Goldstein bem o sabia. Quanto mais velho, mais próximo da imortalidade que mata os artistas mas perdura sua obra.


Assumiu para si a empreitada de furar o bloqueio de uma Alemanha ferida e com uma alta-sociedade desconfiada de tudo o que era estrangeiro (nada mais natural depois da surra imposta por França, Inglaterra e Estados Unidos). Aliás, essas pessoas estavam muito cabisbaixas, morrendo de medo da “ameaça vermelha” que vinha de Moscou, e precisavam de arte de boa qualidade para desanuviar as idéias. E essa arte era cara, pois que pagassem muito para vê-la! Ora, era disso que vivia o capitalismo, mesmo abalado. E ele nunca tivera a pretensão de abrir sua exposição ao grande público, sabia que o povo não tem inteligência suficiente para se deliciar com pinturas, ainda mais quando não conseguia nem se deliciar com pão.

Como o rapaz que entrava. Dera ordens expressas aos guardas para que não deixassem entrar quem não estivesse devidamente vestido ou com convite. Pois aquele, além de estar sujo e trajando uma roupa velha que mal lhe servia, havia conseguido passar pelos guardas e andava resoluto pelo corredor da opulenta galeria. Sendo alcançado pelos seguranças, começou a gritar coisas sem sentido, como igualdade, oportunidades, orgulho proletário... E ainda disse, enquanto era arrastado, que as galerias de arte nem deveriam existir enquanto houvesse fome.

Todo esse furdúncio, é claro, sobressaltou os ricos e amedrontados convidados da exposição das obras da promessa austríaca Adolf Hitler. Goldstein fingiu que nada via e, no âmago de seu ser, desejava abandonar essa Alemanha que nunca fora sua e partir para Jerusalém.


Fato histórico alterado: Vários. Ao contrário do que realmente aconteceu, Hitler NÃO foi reprovado na Academia de Artes de Viena (de acordo com a sua biografia, foi reprovado em 1907). Essa pequena mudança fez sumir o nazismo, o Terceiro Reich, a Segunda Guerra Mundial, a Guerra Fria... e quase toda a História do século XX.

10.2.07

Desafio XIX

Mudar a História.

Isso mesmo. Basicamente, escolher um fato histórico e mudá-lo. As conseqüências seriam imprevisíveis, né? Ou não. Contanto que não houvesse ET'S passeando, criaturas fantásticas brotando do céu rosa ou máquina do tempo, tudo certo.

9.2.07

Resposta da Maria ao desafio XVIII

E O Palhaço, O Que É Que É?

Respeitável público! Hoje não tem marmelada, hoje não tem goiabada! Não se comerá fogo, nem se dormirá em camas de espinhos; não se mergulhará das alturas, nem se andará na corda. Irão se unir o domador e o leão em seu pesar; o rato e o elefante, condoídos. Hoje o espetáculo é do avesso, e ainda assim muito valoroso será. Hoje rir-se-á ao contrário, pois se foi, minha gente! Se foi para sempre o palhaço! Para o céu dos palhaços, para o diabo que o carregou, ou para onde quer que se possa assim supor.

Hoje o circo não mais terá o triste lírico a trotar sobre o cavalo de pau até o centro do picadeiro; chorar em maquiagem as lágrimas de amor de verdade que nos olhos se amuavam; blasfemar com a inocência de um daqueles que deus protege no escuro; arrancar ao público, em espasmos de prazer animal, as vilezas do sarcasmo e do obscurantismo. Morreu! Morreu o que com o circo vinha, com o circo ia, e levava na algibeira do paletó colorido, um girassol, um apito, e as memórias infantis de medo e alegria. Morreu o palhaço, o louco alforriado, o ladrão de mulher!

Hoje a cidade dá adeus ao caminhar ébrio de amor do fanfarrão até o casario e pela cidade; à maquiagem chorosa que mimetizava, na dor do dia, as faces ansiosas do amante que corria na noite; às palavras de poeta que tecia nas vielas, galpões e sacristias; ao choro e ao riso, nervosos e eufóricos, arrancados, em ondas de esperança e apreensão. Morreu! Morreu o que com o bando viera, com o bando iria, e que levava na algibeira do paletó colorido, uma rosa, uma flauta e as promessas mais doces de uma senhorinha. Morreu o bufão, o desavergonhado, o vagabundo, o namorado!

Hoje a Colombina há de chorar por seu Arlequim, que jaz sob o estrelado céu de lona com a rosa engastada no peito, que lhe plantou, à bala, o invejoso Pierrô! Chora, Colombina, que hoje aquele que veio se foi, não voltará, nem poderá levar-te com ele! Chora, circo, que hoje a alegria do truão lhe falta e a alma da tua graça definha! Chora tu também, palhaço, amante calado, que terás aprisionado teu corpo outrora mambembe! Chora, que a tua amada há de viver eternamente com teu algoz, pela vida rendendo-te a paixão e a lembrança, mas deitando-se com ele todos os dias para que ele se refestele naquela que foi tua!

O espetáculo é triste, respeitável público! O espetáculo tem palhaço adormecido, perecido de amor! Dorme, palhaço! Dorme sob o dossel da terra, que será também teu picadeiro, teu céu de lona para sempre estrelado. Leva na algibeira do paletó ruço o cravo, a gaita, e a medalhinha de Fátima num lenço perfumado de tua dama. Deixa-te ficar para sempre ao pé de tua enamorada, na cidade para onde vieste e de onde jamais sairás. E o espetáculo não pode parar!

7.2.07

Resposta da Liliane ao Desafio XVIII

De Pierrô e Arlequim


A primeira coisa da qual ele pôde sentir falta foi a mágica – e não, não era a moça metida num maiô que tentava ser um fraque, gingando uma cartola com malícia idêntica à do seu jogo de pernas em meias arrastão. O problema do mundo que começava a se desfraldar diante de seus olhos era a inexistência de mágica, tornando a simplicidade local explícita e vulgar. Mas não é assim, senhoras e senhores, que a história começa; e ele, por mais imaginativo que fosse, não era tão chegado a recursos literários que transferiam o início para o fim e o fim pro começo e o meio sabe-se lá pra onde. A bem da verdade, sequer era letrado o bastante para ser afeito à literatura de qualquer ordem. Seu mundo era o de histórias e feitos e aplausos – e nesse sim, não faltava mágica.

Portanto, senhoras e senhores, caso ele pudesse intervir nesta narração – e ele pode, posto que é nele que nossa atenção se concentra –, começá-la-ia pela lona. É de direito, então, que assim o façamos. Recomecemos.

A lona fora erguida semanas, meses, anos, séculos antes. A lona era a eterna proteção, a bandeira que demarcava que a loucura ali praticada era inofensiva; substituíssem-na por um muro, e o que teríamos seria um hospício. Porém, mais do que tudo isso, a lona encerrava a mágica – algo que ele percebeu, com muita lógica e propriedade, quando ainda era pouco mais que um toco de gente, quando aquele mundo ainda não lhe pertencia e vice-versa. Era sob a tenda, no espaço fechado e exclusivo, que a mágica se preservava. Abrissem a tenda e ela sumia, dispersa, diluída em ar e descrença. Porque era preciso acreditar para que fosse fato, e essa foi a segunda coisa que ele percebeu. A terceira – e última desse segmento de nossa história – foi a de que ele precisava da lona. Declarou-se, fez-se ágil e inquebrável, e conquistou seu espaço.

Falamos aqui de mágica por todo o tempo, senhoras e senhores, mas ele mesmo demorou muito até conhecê-la de vez. Antes, precisou fazer amizade com os homens e mulheres que a guardavam, acostumar-se com as feras e empacotar quaisquer pertences que quisesse levar consigo. Não levou nada; era uma nova vida e um novo começo marcado pelas cinzas do que deixava. (A bem da verdade, temia não romper os laços e não conseguir se entregar. Seria imperdoável.) E eles se uniram e viajaram, poeira e tempo tingindo suas roupas. À frente do grupo, iam aqueles que, mais tarde, ele aprendeu por conta própria a chamar de farejadores: eles sentiam a mágica, ouviam sua voz, sabiam onde ela floresceria. Confiando na infalibilidade deles, ele controlava a impaciência e seguia.

Até o dia em que eles pararam.

“Alto!”, a palavra de ordem soou, e tudo começou a se organizar e nascer num grande terreno. Trabalharam os homens e mulheres e ele derramou todo o suor de que dispunha e em menos de seis dias o mundo fora concebido outra vez – e ele enfim era parte daquilo. Iniciaram-no na arte, ensinaram-no a apagar o rosto com tinta branca e se redesenhar com linhas negras. Vestiram-no com todas as cores e fizeram seu batismo no centro do picadeiro, sob uma chuva de risos e aplausos e gritos. E foi nas centenas (centenas? Não, milhões!) de pares de olhos brilhantes que ele a viu. Naquele momento, a mágica urrava, selvagem e apaixonada, correndo pelo picadeiro. Fizeram seu pacto, tornaram-se amantes.
É aqui, senhoras e senhores, que começa a queda de nosso herói – que discordaria veementemente dos termos “herói” e “queda”, posto que herói é domador e apenas trapezistas muito infelizes são capazes de quedas dignas de nota. Mais uma vez lhe damos crédito, posto que não há história de amor que funcione sem que um coração se fira.

O amor dos dois durou pouco. Mentira, o amor perdura; o problema, mais uma vez, está na inexistência – e é nesse ponto que o que fora começo e já se tornou meio começa a ganhar ares de fim, da maneira que ele prefere. E a coisa toda ocorreu de tal modo que ele mesmo não percebeu as mudanças, os turnos e ciclos, os furos na lona roída por cães. Entregue ao amor que sentia, ele demorou demais a notar o número cada vez menor de pares de olhos; mesmo os que ficavam já não refletiam mais o mesmo poder. Pouco a pouco eles se foram, engolidos pelo tédio cômodo daquilo que não é mais novidade. Eles não acreditavam mais, e foi aí que a mágica começou a se perder. A bem da verdade, já estava perdida havia tempos, agora apenas não havia mais volta. O que fora solo sagrado nada mais era que terra batida.

Tomamos então um caixote de madeira, senhoras e senhores, posicionando-o no centro do picadeiro. Ao dono de nossa atenção, delegamos um espelho e um pedaço de pano (que, em sua própria história, fora uma camisa estampada): temos, assim, os elementos que nos faltavam para, afinal, alcançar nosso ponto de partida prematuramente abandonado. Era hora da lona ir ao chão, revelando o mundo que escondia – o indesejado lado de fora, por onde a mágica se perderia. Sentado ali no meio, ele fixava a atenção no próprio reflexo, buscando algo dela no último par de olhos com o qual podia contar. Foi o momento da quarta revelação, aquela que o impediu de despir-se do nariz vermelho apenas para vestir seu rosto antigo; o arremedo de lenço, no fim das contas, acabou servindo apenas para conter o suor e talvez uma lágrima ou outra que ele não admitiria, posto que todas as duas lágrimas brotavam-lhe da margarida que levava na lapela.

Foi assim, senhoras e senhores, que ele se ergueu, feito o bom herói que não era – ou recusava-se a ser –, e ajudou homens e mulheres a trazer a lona ao chão e enrolá-la, tal como um manto. Empacotaram o que era preciso, livraram-se do desnecessário, amansaram as feras para mais uma viagem. Dessa vez, porém, ele voltou o rosto para as nuvens, imponente, e correu a passos largos e decididos para a frente do grupo, saltando e girando e traçando movimentos que o faziam parecer feito de ar. Porque ele acreditava – mais do que isso, ele sabia que ninguém acreditava como ele. E, enquanto assim fosse, ele traria (e teria) sua mágica de volta.

5.2.07

Resposta da Priscila ao Desafio XVIII

Conforme os computadores seguiam modernizando bancos, firmas e repartições públicas mundo afora, um grupo de nobres profissionais, os escriturários, pôde acompanhar pouco a pouco o definhamento de seus ofícios, e a necessidade indelével de recorrer a formas alternativas de subsistência. Assim sendo, um considerável grupo de tradicionais senhores, todos marginalizados pelas garras da era contemporânea, juntaram-se para tentar analisar, dentre as ofertas de emprego, se é que elas fossem aparecer, qual cabia melhor a quem. Dois deles viraram garçons, um virou instrutor de auto escola, outro foi pra um supermercado, mais um resolveu viver de biscates, o penúltimo prestou concurso pra bancário, e um último, pela influência decisiva do vizinho, virou palhaço.

Seria falso afirmar que foi fácil convencer o senhor a trabalhar em um negócio tão exótico. O problema é que, dentre as perspectivas de emprego tradicionais, nenhuma lhe fora oferecida de fato. Afora isto, não dava para continuar adiando por mais um dia sequer a promessa de conseguir um novo trabalho – seus filhos e esposa reclamavam diariamente a falta de comida na geladeira.

Assim - e esta talvez seja uma das transições mais radicais que o mercado de trabalho brasileiro já tenha visto – nosso escriturário transformou-se num amabilíssimo palhaço. As roupas foram emprestadas por aquele mesmo vizinho, cujo primo já havia trabalhado num circo. E assim a coisa foi andando.

O senhor até que começou a achar a coisa divertida – apesar do temor inicial. Aos poucos, e peruca vermelha, a gravata borboleta azul, os suspensórios multicoloridos, o sapato pontudo e a maquiagem começaram a se adaptar à rotina dele. Tímido no início, o ex-burocrata foi se revelando um palhaço cada dia mais talentoso. Começou com mini-apresentações num circo de bairro. Em seguida, tornou-se uma das atrações principais do lugar. Conquistava pessoas de todas as idades, que viam nele um quê a mais e ninguém sabia explicar exatamente por quê. Parecia algo inato mesmo. A partir deste momento, recebeu diversos convites para animar festinhas de aniversário e shows, por toda a cidade. A palhaçada, por incrível que pareça, rendia muito mais que o emprego sisudo. Reconhecimento e lucro não tardaram a chegar.

Posicionado num lugar considerado por muitos palhaços algo perto do topo da carreira, o senhor começou a perceber alguns sintomas estranhos. Ao acordar, a vestimenta de palhaço transformou-se numa necessidade primária. Já no café-da-manhã, estava completamente vestido. No início, tirava a roupa para tomar banho e dormir, apenas. Com o passar do tempo, a situação piorou drasticamente. Não conseguia mais tirar a fantasia sequer nas horas de sono. Quando precisava enfrentar compromissos sérios, e isso significava algumas horas sem a fantasia, sentia-se despojado de sua personalidade. Precisava daquilo para voltar à realidade, sentir conforto, paz espiritual e segurança. Em troca do sucesso, tornou-se prisioneiro de uma roupa.

Mas não queria a cura daquilo. Pelo contrário, a carreira decolava cada vez mais, alcançando o que alguns consideram algo além do topo. O senhor estava realmente satisfeito. Havia, inclusive, a iminente possibilidade de um contrato com uma gravadora para a produção de um CD, o que alavancaria sua carreira a patamares nacionais. O vício, porém, piorava a cada dia. Livrar-se daquela roupa, a esta altura, já havia se transformado numa tarefa impossível. Não conseguia tirá-la para nada, sequer o banho. Passou alguns meses assim até que sua família, desesperada com a situação (até porque a roupa já estava muito malcheirosa) amarrou o senhor na cama e de qualquer jeito arrancou-lhe as vestes de palhaço. Foi quando ele gritou de desespero e, no auge da crise de abstinência, revirou os olhos e sofreu algo que a família nomeou de convulsões profundas. Uma ambulância levou o senhor ao hospital, ainda desmaiado.

Um dos filhos, o mais curioso, resolveu investigar a causa disso tudo. Chegou ao vizinho, aquele que lhe doou a roupa, e perguntou sobre o paradeiro do primo misterioso. O vizinho respondeu que o primo, muitos anos atrás, também havia alcançado um grande sucesso na carreira de palhaço, mas abandonou tudo e desapareceu, largando apenas as roupas. Ninguém jamais soube se o primo ficou maluco da cabeça sem causa definida ou se a roupa lhe provocara aquilo tudo. Agora que a situação se repetiu, as coisas passaram a adquirir contornos muito mais definidos.
O filho, então, se aproximou do pai, que ainda dormia, e viu que os médicos haviam lhe retirado toda aquela roupa. Discretamente, tirou-a do quarto e levou para uma fogueira. Estava decidido a dar um fim àquela história toda.

No momento em que a roupa se transformou toda em cinzas, o pai acordou assustado, ainda que a alguns quarteirões de distância do fogo. A magia ao redor da fantasia podia ter acabado, mas seus resquícios ficaram para sempre sobre os pobres palhaços. Alguns, como o primo do vizinho e quantos outros houverem existido antes, ninguém sabe. O escriturário, que se convertera em um palhaço brilhante, hoje sofre ainda se considera uma estrela circense, mesmo que o sucesso já tenha se esvaído há bastante tempo, junto com as cinzas. Está sob os cuidados da família, que nos momentos de lazer consegue se divertir com os malabarismos e as gracinhas sem jeito do pobre senhor.