5.3.07

Resposta da Mônica ao Desafio XIX

Os Últimos

“Que furor consentiu que a espada fina,
Que pôde sustentar o grande peso
Do furor Mauro, fosse alevantada
Contra huma fraca dama delicada?”
Luís de Camões, Os Lusíadas. Canto III

A lama e a escuridão daquela noite não impediam a carruagem de dirigir-se à toda pressa para o sul. Dois pares de cavalos negros galopavam com tamanha fúria que não hesitavam em mergulhar suas patas na terra fofa e encharcada pela chuva incessante e torrencial. A urgência e o perigo, os inimigos que certamente estavam somente a algumas léguas de distância, faziam com que o último servo fiel que guiava a condução não tivesse piedade ao atiçar os pobres animais com o chicote de couro que trazia consigo. Teriam descanso no porto, quando os senhores já não correriam mais risco de vida.

Adentravam a floresta, e aí as patas dos cavalos começaram a sangrar, machucadas pelos galhos pontiagudos perdidos nas folhagens. Ficavam mais lentos, à sua forma reclamavam da dor, mas o chicote não os permitia parar e, lutando com todas as forças, os quatro equinos prosseguiam mato adentro. A lua iluminava o caminho, mas o vento que balançava as árvores fazia as sombras dançarem em meio à floresta, como se estivessem abrigando o inimigo que espreita e espera a melhor hora para atacar.

Observando tudo com olhos muito abertos, justamente à procura do menor sinal desse inimigo invisível, Inês pensava que aquilo era o preço que deveria pagar. O medo tomava conta dela, não por si mesma, mas pelos seus filhos. As crianças dormiam, apoiadas nos ombros umas das outras, insensíveis à morte que as perseguia, e as alcançaria se aqueles cavalos não fossem cada vez mais rápidos. Olhou para elas com aquela típica preocupação de mãe, ajeitou o pescoço de uma, o braço de outra e a mãozinha da terceira, para que tivessem um sono um pouco mais confortável. Afinal, sabia que a rapidez com que a fuga fora planejada cansou-as um bocado. Amava-as mais que tudo, elas faziam-na crer que valera a pena afrontar a coroa portuguesa, a aliança tão instável com Castela e o próprio rei pessoalmente.

Voltou seus olhos para Pedro, e também se preocupou com ele. Viu o mesmo olhar inquieto, procurando na escuridão qualquer sinal de qualquer coisa. Sua admiração por ele crescia a cada minuto, desde o dia em que, ainda como aia da futura rainha, ela o viu pela primeira vez. A viagem de Castela a Portugal tinha sido muito penosa, e ela confessou para si mesma que, à primeira vista, não tinha simpatizado, ou sequer prestado atenção em sua figura. Mas o seu caráter era apaixonante. Lembrou-se da primeira sensação de distância, de como ele era algo inatingível, e depois da admiração e do amor, o primeiro toque de mão, o primeiro beijo, a primeira noite. A dor de vê-lo se casar com outra, ainda que fosse por mera política. A certeza de que ela, Inês, era muito mais do que favorita do futuro rei, era a princesa de fato e de direito. Felizes aqueles dias em que foram construídas, acima dos poderosos daquela terra, as bases do amor sólido, pelo qual estava disposta a tudo.

Não pôde impedir que uma lágrima rolasse pelas suas bochechas ao lembrar do exílio. Pedro a observou, preocupado, perguntando se estava tudo bem. Por um momento, os pensamentos de Inês foram interrompidos. Voltara àquela carruagem, correndo em fuga ao sul de Portugal. Não o respondeu: simplesmente olhou-o com admiração e respeito. Abandonara o trono por ela. Matara o próprio pai quando descobriu o plano dele para assassiná-la. Iniciara uma guerra civil por sua causa. Perdera, e agora fugia com ela. Rompera a aliança com Castela por ela. Enfrentou a invasão dos castelhanos, deixara o reino perdido no caos completo, porque, para ele, não havia trono nem poder que a substituísse. Inês admitia agora: no lugar dele, talvez não tivesse tal coragem.

Ainda em silêncio, estendeu ao marido uma pequena bolsa de couro e fios de ouro: as cartas. A vasta correspondência que trocaram quando fora expulsa da corte por Afonso IV. O amor deles gerava o ódio da casa real. Começaram as intrigas palacianas, a nobreza instigando a fúria do rei, levando-o a conceber sua morte e de seus filhos. Afinal, “não poderia restar nenhum bastardo de sua linhagem sobre a face da terra”! Recordava agora a fúria com que tomara conhecimento de tal plano através de um dos lacaios do rei, um primo distante que nutria certa paixão por ela. E seu maior erro foi ter contado tudo a Pedro.

Nunca o vira naquele estado. Sentia-se traído pelo próprio pai, arruinado, furioso. Subiu em um cavalo e correu ao Palácio Real. Voltou à Santa Clara no dia seguinte, afirmando que não haveria mais incômodo e que poderiam viver juntos agora. Ele era o novo rei. Mas Inês bem sabia que um suserano precisa ser reconhecido por seus vassalos e Pedro jamais foi aceito pelos nobres. A guerra foi inevitável, e inevitável também foi a derrota. A divisão da nobreza em duas facções acabou por trazer os castelhanos, que utilizaram da rejeição e morte da princesa Constança como pretexto para ocupar o trono português. E agora ela, Pedro e as crianças Beatriz, Dinis e João eram uma ameaça tanto interna quanto externa, e suas cabeças tornaram-se as mais desejadas da Europa.

Com a cabeça apoiada na madeira da carruagem, distante de tantas intrigas, Inês pensava agora que ter desafiado tanta gente fora uma pequena travessura, da qual ela estava escapando ilesa. Estavam quase chegando ao porto, e um navio os esperava lá para uma nova vida, aonde etiqueta e limites não eram conhecidos. Dentro de algumas horas, poderia viver com Pedro e seus filhos como uma família e deixar o pesadelo todo para trás. Que Portugal caísse, que aquela terra maldita fosse toda queimada pelos soldados de Castela, que todos os nobres morressem, ela não se importava: estavam livres de convenções, iam viver suas vidas longe dali.

Procurou as mãos de Pedro para transmitir-lhe o otimismo que se apoderava dela, mas, ao encontrá-las, percebeu que tremiam. Despertou rapidamente de seus sonhos de liberdade, notando que a carruagem estava mais lenta. Pararam por entre as árvores. Os amantes entreolharam-se: ambos queriam saber o que estava acontecendo, mas não ousavam cometer a imprudência de colocar a cabeça para fora. Apertaram-se as mãos com mais força. Ouviram o grito surdo do servo e, nesse momento souberam que haviam sido interceptados. O primeiro ímpeto foi o de saltar da carruagem e correr, mas sabiam que, além de não poder carregar três crianças consigo, seriam logo alcançados. Estavam perdidos.

A portinhola da carruagem foi arrombada com um pontapé, e o estrondo acordou os pequenos. Pedro e os dois meninos foram puxados para fora e jogados na lama, enquanto dois soldados entravam na carruagem. De lá, Pedro pôde ouvir o ruído de tecido cedendo misturado aos gritos de Inês e Beatriz, mas não podia fazer nada. Socos e pontapés o dopavam, e a raiva, por mais que tentasse, não lhe dava forças suficientes para enfrentar cinco homens fortes. Sentia-se inútil, não sabia se protegia seus meninos ou sua esposa e sua filha dentro da carruagem, e essa sensação de impotência doía muito mais do que qualquer agressão que pudesse sofrer.

De repente, os gritos cessaram. Os dois homens saíram da carruagem, e ele pôde ver Inês e Beatriz mortas, suas roupas rasgadas pela violência, o sangue escorrendo da jugular e gotejando, misturando-se com a lama. Ainda nesse mesmo momento, um dos soldados desembainha sua espada, e nela ele percebeu as armas de Castela. Portugal ruíra. E antes que pudesse derramar uma lágrima pela perda de sua casa, um golpe apagou qualquer comoção. Ao tombar, ainda viu pela última vez seus dois meninos. Não havia mais um rei, nem herdeiros, nem mais nenhuma ameaça. E a Espanha, sem empecilhos, poderia, enfim, triunfar em terras lusitanas.
Fato histórico alterado: A morte de Inês de Castro, dama galega que casou-se secretamente com o futuro rei Pedro I de Portugal, em 1354, quando ele ainda era o príncipe herdeiro. Ela foi morta a mando do monarca de então, Afonso IV (pai de Pedro), mas seus filhos permaneceram vivos. Quando ascendeu ao trono em 1357, Pedro I os legitimou e declarou Inês rainha póstuma de Portugal. O reinado de Pedro durou 10 anos, e foi marcado pela energia posta em vingar os assassinos de Inês.

1 Comentários:

Anonymous Anônimo disse:

Será que estariamos falando espanhol agora caso isso tivesse acontecido???
Como nos outros textos seu, a tragedia acontece nos momentos finais de forma imprevisivel, hehehhehehe
Parabens.

3/05/2007 11:47 PM  

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