7.2.07

Resposta da Liliane ao Desafio XVIII

De Pierrô e Arlequim


A primeira coisa da qual ele pôde sentir falta foi a mágica – e não, não era a moça metida num maiô que tentava ser um fraque, gingando uma cartola com malícia idêntica à do seu jogo de pernas em meias arrastão. O problema do mundo que começava a se desfraldar diante de seus olhos era a inexistência de mágica, tornando a simplicidade local explícita e vulgar. Mas não é assim, senhoras e senhores, que a história começa; e ele, por mais imaginativo que fosse, não era tão chegado a recursos literários que transferiam o início para o fim e o fim pro começo e o meio sabe-se lá pra onde. A bem da verdade, sequer era letrado o bastante para ser afeito à literatura de qualquer ordem. Seu mundo era o de histórias e feitos e aplausos – e nesse sim, não faltava mágica.

Portanto, senhoras e senhores, caso ele pudesse intervir nesta narração – e ele pode, posto que é nele que nossa atenção se concentra –, começá-la-ia pela lona. É de direito, então, que assim o façamos. Recomecemos.

A lona fora erguida semanas, meses, anos, séculos antes. A lona era a eterna proteção, a bandeira que demarcava que a loucura ali praticada era inofensiva; substituíssem-na por um muro, e o que teríamos seria um hospício. Porém, mais do que tudo isso, a lona encerrava a mágica – algo que ele percebeu, com muita lógica e propriedade, quando ainda era pouco mais que um toco de gente, quando aquele mundo ainda não lhe pertencia e vice-versa. Era sob a tenda, no espaço fechado e exclusivo, que a mágica se preservava. Abrissem a tenda e ela sumia, dispersa, diluída em ar e descrença. Porque era preciso acreditar para que fosse fato, e essa foi a segunda coisa que ele percebeu. A terceira – e última desse segmento de nossa história – foi a de que ele precisava da lona. Declarou-se, fez-se ágil e inquebrável, e conquistou seu espaço.

Falamos aqui de mágica por todo o tempo, senhoras e senhores, mas ele mesmo demorou muito até conhecê-la de vez. Antes, precisou fazer amizade com os homens e mulheres que a guardavam, acostumar-se com as feras e empacotar quaisquer pertences que quisesse levar consigo. Não levou nada; era uma nova vida e um novo começo marcado pelas cinzas do que deixava. (A bem da verdade, temia não romper os laços e não conseguir se entregar. Seria imperdoável.) E eles se uniram e viajaram, poeira e tempo tingindo suas roupas. À frente do grupo, iam aqueles que, mais tarde, ele aprendeu por conta própria a chamar de farejadores: eles sentiam a mágica, ouviam sua voz, sabiam onde ela floresceria. Confiando na infalibilidade deles, ele controlava a impaciência e seguia.

Até o dia em que eles pararam.

“Alto!”, a palavra de ordem soou, e tudo começou a se organizar e nascer num grande terreno. Trabalharam os homens e mulheres e ele derramou todo o suor de que dispunha e em menos de seis dias o mundo fora concebido outra vez – e ele enfim era parte daquilo. Iniciaram-no na arte, ensinaram-no a apagar o rosto com tinta branca e se redesenhar com linhas negras. Vestiram-no com todas as cores e fizeram seu batismo no centro do picadeiro, sob uma chuva de risos e aplausos e gritos. E foi nas centenas (centenas? Não, milhões!) de pares de olhos brilhantes que ele a viu. Naquele momento, a mágica urrava, selvagem e apaixonada, correndo pelo picadeiro. Fizeram seu pacto, tornaram-se amantes.
É aqui, senhoras e senhores, que começa a queda de nosso herói – que discordaria veementemente dos termos “herói” e “queda”, posto que herói é domador e apenas trapezistas muito infelizes são capazes de quedas dignas de nota. Mais uma vez lhe damos crédito, posto que não há história de amor que funcione sem que um coração se fira.

O amor dos dois durou pouco. Mentira, o amor perdura; o problema, mais uma vez, está na inexistência – e é nesse ponto que o que fora começo e já se tornou meio começa a ganhar ares de fim, da maneira que ele prefere. E a coisa toda ocorreu de tal modo que ele mesmo não percebeu as mudanças, os turnos e ciclos, os furos na lona roída por cães. Entregue ao amor que sentia, ele demorou demais a notar o número cada vez menor de pares de olhos; mesmo os que ficavam já não refletiam mais o mesmo poder. Pouco a pouco eles se foram, engolidos pelo tédio cômodo daquilo que não é mais novidade. Eles não acreditavam mais, e foi aí que a mágica começou a se perder. A bem da verdade, já estava perdida havia tempos, agora apenas não havia mais volta. O que fora solo sagrado nada mais era que terra batida.

Tomamos então um caixote de madeira, senhoras e senhores, posicionando-o no centro do picadeiro. Ao dono de nossa atenção, delegamos um espelho e um pedaço de pano (que, em sua própria história, fora uma camisa estampada): temos, assim, os elementos que nos faltavam para, afinal, alcançar nosso ponto de partida prematuramente abandonado. Era hora da lona ir ao chão, revelando o mundo que escondia – o indesejado lado de fora, por onde a mágica se perderia. Sentado ali no meio, ele fixava a atenção no próprio reflexo, buscando algo dela no último par de olhos com o qual podia contar. Foi o momento da quarta revelação, aquela que o impediu de despir-se do nariz vermelho apenas para vestir seu rosto antigo; o arremedo de lenço, no fim das contas, acabou servindo apenas para conter o suor e talvez uma lágrima ou outra que ele não admitiria, posto que todas as duas lágrimas brotavam-lhe da margarida que levava na lapela.

Foi assim, senhoras e senhores, que ele se ergueu, feito o bom herói que não era – ou recusava-se a ser –, e ajudou homens e mulheres a trazer a lona ao chão e enrolá-la, tal como um manto. Empacotaram o que era preciso, livraram-se do desnecessário, amansaram as feras para mais uma viagem. Dessa vez, porém, ele voltou o rosto para as nuvens, imponente, e correu a passos largos e decididos para a frente do grupo, saltando e girando e traçando movimentos que o faziam parecer feito de ar. Porque ele acreditava – mais do que isso, ele sabia que ninguém acreditava como ele. E, enquanto assim fosse, ele traria (e teria) sua mágica de volta.

0 Comentários:

Postar um comentário

<< Home