5.2.07

Resposta da Priscila ao Desafio XVIII

Conforme os computadores seguiam modernizando bancos, firmas e repartições públicas mundo afora, um grupo de nobres profissionais, os escriturários, pôde acompanhar pouco a pouco o definhamento de seus ofícios, e a necessidade indelével de recorrer a formas alternativas de subsistência. Assim sendo, um considerável grupo de tradicionais senhores, todos marginalizados pelas garras da era contemporânea, juntaram-se para tentar analisar, dentre as ofertas de emprego, se é que elas fossem aparecer, qual cabia melhor a quem. Dois deles viraram garçons, um virou instrutor de auto escola, outro foi pra um supermercado, mais um resolveu viver de biscates, o penúltimo prestou concurso pra bancário, e um último, pela influência decisiva do vizinho, virou palhaço.

Seria falso afirmar que foi fácil convencer o senhor a trabalhar em um negócio tão exótico. O problema é que, dentre as perspectivas de emprego tradicionais, nenhuma lhe fora oferecida de fato. Afora isto, não dava para continuar adiando por mais um dia sequer a promessa de conseguir um novo trabalho – seus filhos e esposa reclamavam diariamente a falta de comida na geladeira.

Assim - e esta talvez seja uma das transições mais radicais que o mercado de trabalho brasileiro já tenha visto – nosso escriturário transformou-se num amabilíssimo palhaço. As roupas foram emprestadas por aquele mesmo vizinho, cujo primo já havia trabalhado num circo. E assim a coisa foi andando.

O senhor até que começou a achar a coisa divertida – apesar do temor inicial. Aos poucos, e peruca vermelha, a gravata borboleta azul, os suspensórios multicoloridos, o sapato pontudo e a maquiagem começaram a se adaptar à rotina dele. Tímido no início, o ex-burocrata foi se revelando um palhaço cada dia mais talentoso. Começou com mini-apresentações num circo de bairro. Em seguida, tornou-se uma das atrações principais do lugar. Conquistava pessoas de todas as idades, que viam nele um quê a mais e ninguém sabia explicar exatamente por quê. Parecia algo inato mesmo. A partir deste momento, recebeu diversos convites para animar festinhas de aniversário e shows, por toda a cidade. A palhaçada, por incrível que pareça, rendia muito mais que o emprego sisudo. Reconhecimento e lucro não tardaram a chegar.

Posicionado num lugar considerado por muitos palhaços algo perto do topo da carreira, o senhor começou a perceber alguns sintomas estranhos. Ao acordar, a vestimenta de palhaço transformou-se numa necessidade primária. Já no café-da-manhã, estava completamente vestido. No início, tirava a roupa para tomar banho e dormir, apenas. Com o passar do tempo, a situação piorou drasticamente. Não conseguia mais tirar a fantasia sequer nas horas de sono. Quando precisava enfrentar compromissos sérios, e isso significava algumas horas sem a fantasia, sentia-se despojado de sua personalidade. Precisava daquilo para voltar à realidade, sentir conforto, paz espiritual e segurança. Em troca do sucesso, tornou-se prisioneiro de uma roupa.

Mas não queria a cura daquilo. Pelo contrário, a carreira decolava cada vez mais, alcançando o que alguns consideram algo além do topo. O senhor estava realmente satisfeito. Havia, inclusive, a iminente possibilidade de um contrato com uma gravadora para a produção de um CD, o que alavancaria sua carreira a patamares nacionais. O vício, porém, piorava a cada dia. Livrar-se daquela roupa, a esta altura, já havia se transformado numa tarefa impossível. Não conseguia tirá-la para nada, sequer o banho. Passou alguns meses assim até que sua família, desesperada com a situação (até porque a roupa já estava muito malcheirosa) amarrou o senhor na cama e de qualquer jeito arrancou-lhe as vestes de palhaço. Foi quando ele gritou de desespero e, no auge da crise de abstinência, revirou os olhos e sofreu algo que a família nomeou de convulsões profundas. Uma ambulância levou o senhor ao hospital, ainda desmaiado.

Um dos filhos, o mais curioso, resolveu investigar a causa disso tudo. Chegou ao vizinho, aquele que lhe doou a roupa, e perguntou sobre o paradeiro do primo misterioso. O vizinho respondeu que o primo, muitos anos atrás, também havia alcançado um grande sucesso na carreira de palhaço, mas abandonou tudo e desapareceu, largando apenas as roupas. Ninguém jamais soube se o primo ficou maluco da cabeça sem causa definida ou se a roupa lhe provocara aquilo tudo. Agora que a situação se repetiu, as coisas passaram a adquirir contornos muito mais definidos.
O filho, então, se aproximou do pai, que ainda dormia, e viu que os médicos haviam lhe retirado toda aquela roupa. Discretamente, tirou-a do quarto e levou para uma fogueira. Estava decidido a dar um fim àquela história toda.

No momento em que a roupa se transformou toda em cinzas, o pai acordou assustado, ainda que a alguns quarteirões de distância do fogo. A magia ao redor da fantasia podia ter acabado, mas seus resquícios ficaram para sempre sobre os pobres palhaços. Alguns, como o primo do vizinho e quantos outros houverem existido antes, ninguém sabe. O escriturário, que se convertera em um palhaço brilhante, hoje sofre ainda se considera uma estrela circense, mesmo que o sucesso já tenha se esvaído há bastante tempo, junto com as cinzas. Está sob os cuidados da família, que nos momentos de lazer consegue se divertir com os malabarismos e as gracinhas sem jeito do pobre senhor.

2 Comentários:

Blogger LUCY . disse:

ALINE ...ENTENDENDO UM POUCO MAIS SOBRE VOCÊ .
NÃO ESQUEÇO O DIA EM QUE TENTOU ME AJUDAR ...
UM ABRAÇO ,
LUCY - VIZINHA QUE APRECIA SUA MARAVILHOSA FAMÍLIA .

5/07/2014 6:09 PM  
Blogger LUCY . disse:

E-MAIL: lfpalavrasdeluz@gmail.com

LUCY - VIZINHA .É QUE ESQUECI DE COLOCAR NO COMENTÁRIO ANTERIOR (O E-MAIL)

5/07/2014 6:14 PM  

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