11.1.07

Resposta da Maria ao Desafio XVII

O céu do cerrado jamais estivera tão impecavelmente limpo, e o ar mais placidamente inerte. Mas a inquieta e fusiforme figura que se esgueirava, atachada à sua pasta de couro marrom-havana, estremecia a cada freqüente instante em que jurava ter ouvido o sopro do vento, o ciciar de uma cigarra, o farfalhar de uma folha seca –muito embora não houvesse sequer sinal de folhas de árvores naquela ala do cemitério, botanicamente povoada apenas por grama e arbustos baixos e, àquela altura no ano, pelados.

Abílio Cantareira jamais fora o mais brilhante de seu círculo de conhecidos em qualquer disciplina, e mesmo muito impressionou quando se elegeu deputado federal pelo Mato Grosso –diziam as más línguas que seu queixo de Noel Rosa foi que angariara a simpatia dos eleitores, penalizados do rosto insuficiente do candidato. E boa parte de seu não-brilhantismo se dava exatamente ao fato de ter sempre sido um covarde, para usar a expressão mais objetiva. Naquela noite não havia de ser diferente, por todos os motivos que a empreitada compreendia.

Afinal, quando o nobre colega lhe propôs o local, dissera que aquela era a forma mais segura de realizar a “permuta”, conforme chamou. Câmeras escondidas, flagrando deputados desastrados, disse o senador alagoano durante o casamento de seu filho do meio, era o que mais tinha nesse país. “Se você é deputado, é senador, você é ladrão. Se é ministro então, deus que livre a sua mãezinha”, ele atestara com uma azeitona na boca, enquanto outros parlamentares, muy amigos, assentiram preocupadamente com as cabeças meneantes. O deputado Abílio Cantareira foi um deles.

Agora, entretanto, o senador Aurélio Firmino não parecia tão robusto quanto naquele dia, com aquelas palavras e aquela azeitona na boca. Ao contrário, parecia um velhote mirrado e incapaz de lidar de forma heróica contra um dos mitos de sue folclore ou um dos achaques de sua polícia. E ele estava agora ali, perambulando pelo cemitério de Brasília, com uma mala recheada de favores, sem saber onde raios havia de ser o mausoléu de dona Auxiliadora Firmino, encurralado por aquele cento de estátuas fúnebres.

Uma mão tocou-lhe o ombro, ao que prontamente o deputado respondeu com um som agudo e gutural, como se respirasse um gato vivo pela boca. Ouviu a voz obscena e bufante do nobre colega dizer “Oxe, homem, deixe de ser eriçado! Nem parece um deputado da república”. O deputado Cantareira de voltou pacientando-se. Como se seu cargo político –imputado pelo sagrado direito do voto direto popular universal- dependesse de sua frieza para encarar com naturalidade uma visita noturna a um cemitério. E definitivamente, caso assim o fosse, renunciaria naquele exato momento.
“Ande, homem. Você já está tarde. Não tenho a noite toda. Teve a certeza de que ninguém o seguiu?”

“Quase absoluta, senador”, o deputado atestou em tom lamurioso e comemorativo, enxugando o suor frio da testa com um lenço de xadrez verde e cinza.

“Como já diria o rei, quase também é mais um detalhe”, o senador fez um muxoxo. “Mas que jeito? Ande, vamos logo acabar com essa negociação de uma vez, que mandei a cozinheira preparar um creme de camarões, e eu detesto camarão frio.”

O deputado, em seus miúdos passinhos assustados, continuou a caminhar, atrás do senador. Após esgueirarem-se por algumas sepulturas, e mesmo com a espinha do deputado Cantareira enregelada pelo medo, entraram em um mausoléu de aparência suntuosa. O interior, inacreditavelmente confortável, parecia ter sido feito para receber os nobres colegas.

“Sente-se”, disse o senador, apontando para um pequeno sofá que ficava de costas para o sarcófago. “A casa é sua”.

“Prefiro que não seja, ainda...”

“Modo de dizer, homem. Só não fale muito alto, que minha Auxiliadorazinha, que deus a tenha, está em seu sono eterno, e não gosta de ser perturbada.”, o senador disse rindo-se muito. O deputado começava a achar aquela história muito aterradora. “Mas, vamos ao que interessa. Trouxe?”

Cuidadosamente, o deputado pôs a pasta sobre o colo e abriu-a, virando-a para o senador. “Pode levá-la”.

“Oxe, e eu tenho cara de besta?”, o senador retrucou. “Antes de dar por aceito esse negócio, tenho que conferir a soma”. E, embora o deputado insistisse para que o senador levasse a pasta para casa e lá a conferisse, nada podia demover do senador a idéia de permanecer o máximo de tempo possível dentro de um mausoléu, no cemitério, à noite. “Afinal de contas, quem vai tomar conta desse dinheiro é minha Auxiliadorazinha, que deus a conserve. Ela não havia de ficar feliz se faltasse um dos seus peixinhos...”. A espinha de Abílio congelou, e durante o tempo em que estiveram ali, ele torceu para que tudo estivess em ordem, com sobras até, para evitar a fúria de Dona Auxiliadora.

Ao fim da operação de contagem, que levou em torno da meia hora mais assustadoramente longa da vida do deputado, o senador depositou vários montes de notas sob a tampa do sarcófago. Deixou na pasta apenas alguns deles, e devolveu-a para o deputado. “Acho que essa pasta lhe pertence. Agora, pode ir. E não esqueça de dar lembranças minhas ao presidente do partido. Vá, antes que teu ‘quase’ vire o meu ‘já era’. Ande. Não esqueça, lembranças do senador para o presidente do partido”.

Tão discretamente quanto entrou, o deputado foi saindo. Mas eis que, de repente, ele ouve gritos, sons, vozes e alaridos. O não-tão votado deputado federal do Mato Grosso, já tomado pelas emoções da noite, teve um ataque e desfaleceu. Não era, afinal de contas, a dona Auxiliadora desgostosa com o resultado da contribuição. Era a polícia, que fora avisada pelo coveiro de que havia movimentos estranhos no cemitério. Acompanhando-na, estava de perto a imprensa e a polícia federal.

O deputado Abílio Cantareira foi responsável pela abertura da CPI do Defunto, que investigou a ocorrência de negociatas e, mais tarde, de comercialização e instalação independente de equipamentos de segurança para flagrar negociatas (por uma empresa de posse do genro mais novo do senador Firmino). O relator da CPI, honrado a ponto de chorar a morte de sua mulher numa noite de calor, foi o senador Aurélio Firmino. A surpresa é que um dos indiciados foi dona Auxiliadora das Neves Firmino, a falecida mulher de Aurélio Firmino, acusada de mesquinhez e de ocultação e desvio de divisas públicas. Pobre senador, que mulher ele venerava...




Recomeço

Nos campos onde Deus estende a mão aos homens
Fez, num triste arvoredo, o joão-de-barro, seu ninho
Feliz daquele que chora a dor dos que se foram
Ouvindo o rondó do nascer de um passarinho

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