28.12.06

Resposta da Patrícia ao Desafio XVII

Da Arte e Ciência de Contar uma História

Eu vou falar exatamente como aconteceu. Você pode acreditar ou não. Era uma noite do dia dos namorados, bem aqui nesse mesmo lugar. Trabalhei de vigia por muito tempo e vi muita coisa. Inclusive essa cena, que começa com duas pessoas paradas em frente a esse portão.

Eram um garoto e uma garota, com uns vinte anos, no máximo. Vestidos de preto, mas eram mais normais do que o tipo comum por aqui. Não era estilo baile à fantasia, sabe? Pois é, tudo começa com ela falando.
- Um cemitério?
- É, você não gosta dessas coisas góticas? Então... – perguntou ele, esperançoso de ter acertado.
Ela não sabia bem como explicar.
- Bom, é... diferente, né? Inusitado.
- E olha que escolhi um cemitério legal, nada desses modernosos de filme americano.
- Realmente, esse parece saído de um conto do Allan Poe.
- Então, vamos nessa? A noite está só começando...
- Isso quer dizer que você tem mais surpresas?
Ele apenas ri e indica o caminho para a moça ir em frente. O jovem casal simplesmente entra no cemitério antigo. O portão? Bem aberto, pois o lugar há muito estava abandonado. Seguiram adiante e qual não foi a surpresa ao encontrarem uma pessoa em pé, em frente a um túmulo.
- Seu cachorro! Safado! Fica aí, mesmo, sendo comido pelos vermes! Aliás, nem os vermes devem te querer. Capaz de terem indigestão! – as palavras saíam raivosas, cuspidas.
Era uma velhinha daquelas típicas, verdadeiro estereótipo ambulante: saia e blusa pretas e compridas, complementadas por um respeitável véu também preto. Coisa de quem está de luto há muito tempo. O casal se entreolhou, achou tudo muito esquisito e, antes de tentar iniciar uma conversa, a senhora desatou a chorar como carpideira profissional - se jogou em cima da cova e tudo! Os dois acharam por bem continuar caminhando.

Como falei, o cemitério estava desativado. Por isso foi um tanto difícil achar um espaço não tomado pelo mato para armarem o lanche. Pois é, lanche. Veja você, piquenique no cemitério! Tinha até um candeeiro antigo, provavelmente emprestado da avó de alguém. E um cobertor velho servindo de toalha. Com direito a copos e talheres de plástico, claro.
- Eu trouxe trilha sonora, fiz uma seleção caprichada – ele diz, enquanto liga o mp3 player nas caixinhas retiradas do computador de casa.
- Legal, isso ajuda a dar clima! Vamos ver se você tem bom gosto...
E sai das caixas um som alto e claro:

Welcome to the Hotel Califórnia
Such a lovely place
Such a lovely place

Precisava ver a cara do garoto. Era uma decepção só! Já a menina gargalhava e levou tempo até voltar a falar.
- Olha, eu sempre achei essa música assustadora, mas...
- Não era essa, pô! Devo ter misturado as músicas na hora de passar do computador pro mp3. Vamos pra próxima:
You've gotta make your own kind of music
sing your own special song,
make your own kind of music
Ela fez uma cara de ponto de interrogação e nem completou a pergunta.
- Mas essa música não toca em... ?
- É, toca! E também não era essa, merda! Vou tentar a última vez.
O garoto já estava ficando furioso, puto dentro das calças, como se diz. Ela parecia achar tudo divertidíssimo quanto mais nervoso ele ficava.

YMCA!
It’s fun to stay at the YMCA!

- Ah, agora entendi tudo. Esse mp3 player não é o meu! Foi o idiota do namorado do meu irmão que trocou os aparelhos e levou as minhas músicas góticas sabe-se lá pra onde!
- Tudo bem, só essa seleção já ganhou o meu dia – ela comenta, mal conseguindo pronunciar as palavras entre uma risada e outra.
- Mas isso não vai atrapalhar a nossa noite, né?
- Não, claro. E eu gosto dessas músicas, vai.
- Ah, eu também, mas não tem nada a ver com o lugar!
Eles decidiram comer e quando estavam prestes a começar o farnel, ouvem barulho de mato se mexendo. Do arbusto mais próximo, apenas as vozes:
- Cara, olha isso! Eu falei que tinha defunto aqui!
- Cara... Que irado!
Eram dois outros garotos, cujo cheiro de cachaça e maconha o casal poderia sentir a léguas de distância – se eles soubessem o que são léguas, naturalmente.
- Que defunto o quê! A gente está bem vivo! – ele responde, indignado.
- Todo mundo resolveu ir ao cemitério hoje, cacete? – é a vez dela, incrédula.
- Ah, não é defunto mesmo porque defunto não come - disse o convidado involuntário com ar professoral, ajeitando os óculos no nariz.
- Pô, aí, a gente pode fazer lanchinho com vocês? Estamos na maior fome! – emenda o outro, já tirando o gorro e fazendo menção de sentar-se.
- De jeito nenhum! – cortou imediatamente o rapaz do piquenique.
- Olha, é nosso jantar de dia dos namorados. Vocês não querem segurar vela, né? – a moça lembra, gentilmente.
- Ah, tá. Tudo bem. A gente entendeu.
Eles ficaram aliviados quando os dois garotos foram embora. Finalmente, acenderam as velas e fizeram o lanche, rindo com a despretensão inerente aos jovens apaixonados. Para eles, tudo era perfeito, mesmo com sanduíches de patê, vinho barato e juras de amor idem.

Hein? O resto da história? Ih, sei lá. Eu peguei no sono e não vi mais nada. Ainda tive que limpar a bagunça deixada por essa garotada no dia seguinte. Bando de irresponsáveis, vou te contar!

(O leitor não pode ver, mas o narrador agora dorme pesado na cadeira de balanço. E ronca. Muito alto)

1 Comentários:

Blogger Paty disse:

Detesto texto que precisa de explicação , mas o adendo se faz inevitável: creio que essa resposta surtada funcione melhor ouvida do que lida, mesmo com os parcos dotes teatrais da autora.

Sendo assim, me dêem um desconto, pliz! :)

12/28/2006 1:44 AM  

Postar um comentário

<< Home