30.1.07

Resposta da Aline ao Desafio XVIII

Como todo bom circo, aquele chegara sem qualquer aviso; aboletara-se no meio da maior praça da cidade antes que os moradores acordassem. Quando se viu, a lona estava lá, assim como o leão velho e as bailarinas uma medida acima da ideal para sua função. Origem não havia, apenas um nome quase russo que fazia par com os grandes bigodes pretos do mestre de cerimônias.

Pouco a pouco os cidadãos foram se acostumando com a nova presença, entediados que estavam com a falta de novidades na vizinhança. As crianças gostavam de cabular aulas para visitar os artistas nas horas de folga dos espetáculos; acompanhavam a rotina de treinos do jovem malabarista (a única coisa jovem naquele comboio), chegavam perto dos bichos quando estes em nada lembravam as feras selvagens da noite, importunavam o mágico até que este lhes ensinasse alguma brincadeira.

Não demorou para que uma outra distração surgisse naquelas paragens. Menos de uma semana após a chegada da trupe, num domingo, a população saiu da missa para encontrar as portas arrombadas do banco da cidade. De tão pequeno que era o estabelecimento, apenas um guarda ficava a postos enquanto o resto do povo ia pedir a bênção dos céus na igreja – e o desafortunado pagão jazia agora numa poça do próprio sangue diante dos cofres abertos. As suspeitas, como era de se esperar, recaíram sobre os mais recentes visitantes. O delegado foi ter com o mestre de cerimônias, que também fazia as vezes de dono do circo; este naturalmente negou qualquer acusação, mas exigiu que a polícia não fosse incomodar o descanso de seus artistas com tamanho desassossego.

Foi quando invadiu o trailer um homenzinho pequeno e desajeitado, gesticulando insistentemente para os homens da lei. “É o palhaço”, declarou o mestre de cerimônias. “Não lhe dêem atenção; é mudo e um tanto idiota. Não vai ajudá-los.” O palhaço insistia em apontar para a lona e jogar os braços para todo lado. O delegado e seu assistente, sem entender patavina do que o pobre homem tentava demonstrar, preferiram acatar por hora a sugestão do empresário.

O caso do banco ainda não havia esfriado quando o dono da chapelaria adentrou a sala do delegado, desferindo impropérios a quem estivesse por perto para ouvir. Sua loja, a única da cidade que podia se dizer chique, amanhecera com as vitrines estilhaçadas e a caixa registradora vazia, tal como várias gavetas. Jóias, tecidos finos, o lucro de todo o mês! Os homens da lei foram novamente pressionar o dono do circo, que novamente eximiu seus artistas de culpa, garantindo que todos lhe eram velhos conhecidos e estavam bastante satisfeitos com a humilde mas bela vida circence.

Surgiu o palhaço mais uma vez, tentando com o olhar de angústia prestar sua queixa ao delegado; pulou desesperadamente, como se quisesse se balançar no vazio, depois apanhou de súbito as canetas douradas do chefe e jogou-as para o alto como uma criança debilóide. O mestre de cerimônias tratou de enxotá-lo do trailer, berrando que suas macaquices atrapalhavam o andamento da justiça. “Não é momento para risos, bufão!”

A recorrência daquela cena intrigou o assistente do delegado, que decidiu consultar o palhaço sem o conhecimento de seu chefe. Esgueirando-se por detrás de árvores, jaulas e barracas, foi ter com o homem que se encolhera tristonho num canto recluso.

“Diga, meu caro: você conhece o ladrão?”

O artista do riso, ainda abraçando os próprios joelhos, assentiu com a cabeça timidamente.

“Ele trabalha para o circo, é isso que você tentava dizer?”

Com os olhos arregalados, fez que sim com mais vigor do que antes, surpreso por estar sendo compreendido.

Isto pareceu alegrar também o assistente. Sabia que estava chegando a algum lugar, e isso talvez lhe rendesse uma promoção. “Você o viu? Quem é? Onde ele está?”

O excesso de pergunas excitara por demais os ânimos do palhaço, que se esforçava para articular palavras mas o único som capaz de produzir era uma seqüência de guinchos e grunhidos incompreensíveis. O barulho atraiu o delegado e o mestre de cerimônias, que trataram de pôr fim ao interrogatório.

Mais tarde o assistente compartilharia suas suspeitas com o chefe. Acreditava que o culpado era o dono do circo; por isso o empresário sempre dava um jeito de afastar o palhaço. O pobre mudo devia saber de alguma coisa, mas a deficiência e o temor não permitiam que se comunicasse. O delegado achou que a hipótese do assistente era simples demais, mas não a descartou. Levaria aquela idéia em consideração, quando conduzisse seu interrogatório no dia seguinte.

O delegado mal teve tempo de formular suas perguntas: a cidade amanhecera em meio a nova balbúrdia. E dessa vez a coisa era grave. Ao chegar à praça do circo, o policial foi informado do ocorrido pelos garotos da escola. Um dos meninos fora encontrado morto a machadadas bem na frente do trailer do palhaço. O crime tinha toda a cara de queioma de arquivo: curioso, o moleque decerto vira o que não deveria ter visto. Havia gente – em especial os pais da criança assassinada – bradando ordens de linchamento. O assistente correu até a cena do crime, onde encontrou, escondido atrás da porta do trailer, o pobre doente aterrorizado com os gritos do povo.

“Sei que não foi você”, disse o homem da lei para acalmá-lo. “Alguém fez isso para incriminá-lo, pois sabe que você não conseguiria se defender. E não se preocupe, eu já sei quem é o monstro que fez isso.” Essas palavras pareceram trazer um enorme alívio ao rosto do bufão. O assistente, pragmático, já pensava algumas jogadas adiante. “Eles não podem prendê-lo sem provas, mas a população está agitada demais e vai exigir que apareça um culpado. Preciso que você me mostre, de alguma forma, como eu posso pôr o dono do circo atrás das grades.”

Para surpresa do asistente, o palhaço recebeu esta nova informação com um pulo e uma forte sacudida de cabeça. “Não?” As hipóteses pareciam cair por terra enquanto o homenzinho gesticulava e fazia barulhos. “Façamos o seguinte: esconda-se aqui enquanto eu e o delegado afastamos essa gente aí fora. Quando tudo estiver mais calmo, faremos de conta que o estamos prendendo e você nos mostra quem é o verdadeiro assassino. Certo?”

O homem concordou.

Conforme o combinado, depois de dispersar o povo, os dois policiais foram até o trailer do palhaço, alegando possuírem mandado de prisão contra o artista. Muito adequadamente, o homem desatou a correr pela praça do circo como se fugisse. Parou na frente do trailer do malabarista e apontou.

O mestre de cerimônias pareceu mais desapontado que chocado quando encontraram, embaixo da cama do acusado, as jóias da chapelaria, parte do dinheiro do banco e o machado ainda ensangüentado. “Faz mais de dez anos que não acho um malabarista decente”, disse o empresário. “Rapaz tão jovem, nunca pensaria que era um criminoso. Na próxima parada terei que arranjar um novo – já é a quarta ou quinta vez...” O bigodudo ainda tentou negociar com os policiais para que mudassem de idéia e libertassem o réu, apenas para não ter o trabalho de contratar um novo artista, mas nada feito. Ao sair, o assistente ainda viu o palhacinho sorrir satisfeito enquanto o delegado arrastava para a cadeia o malabarista, que se debatia e declarava sua inocência aos berros.

Quando se descobriu o erro já era tarde. Na manhã seguinte, a moça mais bonita da cidade foi encontrada no meio da praça, espancada e violentada até só lhe restar um fiapo de vida. “O palhaço”, ela conseguiu sussurrar no ouvido do assistente antes de morrer. Sem informar seu destino, o circo – como todo bom circo – havia sumido durante a madrugada.

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