25.2.07

Respostas da Mariana ao Desafio XIX

Academia


1° de maio de 1945

Reprovado. Pelo segundo semestre consecutivo, outra vez o papel timbrado com a prova de seu fracasso escrita em vermelho. O velho jargão diz que notícia ruim chega rápido, mas aquela custou outros seis meses. “É bom já ir me acostumando. Só faltava esse pra completar a coleção de fiascos, quero só ver o que virá depois. Ora, parabéns para mim!"

Pois parecia que não era adequado à universidade. Ou à vida como um todo, um observador mais atento diria. Não que não possuísse em si a vontade de mudar e crescer, mas sempre esbarrava na falta de oportunidades. Emprego não tinha mais há uns bons meses, foi demitido para redução de custos porque “a inflação está a cada dia mais cruel”. Suas roupas estavam velhas e pelo menos dois números abaixo do correto, mas não havia loja para gente comum, do povo; apenas boutiques para aqueles dispostos a pagar algumas centenas por roupas francesas contrabandeadas. Sentiu um formigamento no peito ao pensar nisso e olhou de novo o papel timbrado. Aquela palavra em vermelho sufocava-lhe o estômago, o que o fez lembrar do quão faminto estava. Ultimamente, não prestava atenção nisso. A fome era normal desde a grande humilhação. “É... parece que já sou um autêntico alemão! A imagem e semelhança do país...”

Resolveu procurar o que comer em algum bar, de preferência o mais asqueroso das redondezas. Uma vez que tinha parquíssimos marcos no bolso, devia que abstrair o asco pelo bem do estômago. Depois de passar por uma fila consideravelmente lenta de bêbados e mães cheias de filhos famintos, pediu uma caneca de leite com nata e uma fatia de pão. Seu descontentamento foi tremendo ao ouvir o balconista dizer que não poderia comer nada com aquele dinheiro naquele dia, apenas na véspera. Não foi tomado por surpresa, o que o preocupou ainda mais, visto que a desgraça já estava instalada nele como condição normal.

Era nessas horas que pensava nas conversas que tinha com uns colegas da universidade. “Será que eles estão certos? Será que o comunismo devolveria a dignidade ao nosso povo e o tiraria da miséria?? Mas, como arrumar recursos para promover a igualdade em um país tão arrasado como o nosso?

Continuou devaneando, sem perceber onde as pernas o levavam. Só acordou de seus pensamentos ao ser quase atropelado por um carro luxuoso e, quando deu por si, estava parado em frente à principal galeria de arte de Berlim, onde acontecia a inauguração de uma exposição com um título curioso: Adolf Hitler, a promessa madura da Academia de Viena.

Inexplicavelmente, o sangue subiu à sua cabeça. A visão daquelas pessoas soberbamente vestidas saindo de seus carros imponentes, a galeria que cheirava a luxo e o fato de a exposição ser de um austríaco quando muitos artistas alemães não tinham o que comer bateu como um soco na cara do rapaz; que tomou a atitude mais impensada de toda a sua vida

— Quem você pensa que é para entrar? — perguntou arrogantemente um dos guardas

— Sou um cidadão alemão e tenho o direito de assistir a uma exposição no meu país. Portanto, com licença.

Estava sendo impedido pelos guardas quando conseguiu se desvencilhar e adentrar o saguão da galeria. Os olhares marcados por relógios caros e jóias de brilhantes o perfuravam, mas ele ia determinado. A igualdade, as oportunidades e o orgulho saíam vibrantes de sua garganta, como se quisesse perguntar onde tinham se perdido na História do país.

Não podia ser diferente. Agarrado pelos guardas, teve que aceitar seu destino imediato: alguma cela de algum xadrez fétido, lotado de almas ousadas e desesperadas como a dele. A caminho da delegacia, seu estômago voltou a lembrá-lo da fome que sentia. Procurou consolar a si mesmo. Ao menos teria comida na prisão.


Promessa

1° de maio de 1945

Estava tudo pronto. Finalmente, os meses estafantes lidando com fornecedores, a burocracia infernal da alfândega e os eventuais problemas com falta de recursos (tão comuns no país desde a grande humilhação) se tornavam piada frente ao saguão do museu especialmente decorado, ao coquetel todo importado e ao prestígio que conquistava. Sim, era a exposição da sua vida.

Podia sentir o tenro sabor da glória em cada olhar de aprovação dos seus convidados, nos elogios efusivos de críticos entusiásticos e até no esmero com que as pessoas se haviam vestido para o vernissage. Sem dúvida, o dinheiro mais bem investido de toda a sua carreira e passaria à História por isso, não por sua famosa megalomania. Oh, como estava em êxtase consigo mesmo!

De repente, pensou no quanto aquilo tudo havia sido arriscado. O país estava em crise, era fato, e, ainda que isso não afetasse em nada a estabilidade dos Goldstein, era grande o risco de prejuízo de qualquer iniciativa cultural ousada naquela nação tão destruída e humilhada. Mais uma vez, nada que abalasse esse rico marchand. Se o povo estava rebaixado, que se devorassem para não morrerem de fome. Ele mesmo havia nascido ali, mas aquela nem era a pátria dos seus. De alguma forma, não pertencia.

Mas tudo isso era só detalhe. Não queria pensar em nada no dia em que seu artista austríaco conquistaria a crítica e a alta-sociedade alemã.

Lembrava como se fosse ontem do dia em que o conheceu. Estava como visitante na Academia de Artes de Viena e embasbacou-se com a intensidade sóbria das cores do professor Adolf Hitler. Embora um pouco passado da idade (tinha 56), suas pinturas ainda respiravam o frescor da perfeição de 40 anos atrás. Além disso, o tempo era seu aliado, Goldstein bem o sabia. Quanto mais velho, mais próximo da imortalidade que mata os artistas mas perdura sua obra.


Assumiu para si a empreitada de furar o bloqueio de uma Alemanha ferida e com uma alta-sociedade desconfiada de tudo o que era estrangeiro (nada mais natural depois da surra imposta por França, Inglaterra e Estados Unidos). Aliás, essas pessoas estavam muito cabisbaixas, morrendo de medo da “ameaça vermelha” que vinha de Moscou, e precisavam de arte de boa qualidade para desanuviar as idéias. E essa arte era cara, pois que pagassem muito para vê-la! Ora, era disso que vivia o capitalismo, mesmo abalado. E ele nunca tivera a pretensão de abrir sua exposição ao grande público, sabia que o povo não tem inteligência suficiente para se deliciar com pinturas, ainda mais quando não conseguia nem se deliciar com pão.

Como o rapaz que entrava. Dera ordens expressas aos guardas para que não deixassem entrar quem não estivesse devidamente vestido ou com convite. Pois aquele, além de estar sujo e trajando uma roupa velha que mal lhe servia, havia conseguido passar pelos guardas e andava resoluto pelo corredor da opulenta galeria. Sendo alcançado pelos seguranças, começou a gritar coisas sem sentido, como igualdade, oportunidades, orgulho proletário... E ainda disse, enquanto era arrastado, que as galerias de arte nem deveriam existir enquanto houvesse fome.

Todo esse furdúncio, é claro, sobressaltou os ricos e amedrontados convidados da exposição das obras da promessa austríaca Adolf Hitler. Goldstein fingiu que nada via e, no âmago de seu ser, desejava abandonar essa Alemanha que nunca fora sua e partir para Jerusalém.


Fato histórico alterado: Vários. Ao contrário do que realmente aconteceu, Hitler NÃO foi reprovado na Academia de Artes de Viena (de acordo com a sua biografia, foi reprovado em 1907). Essa pequena mudança fez sumir o nazismo, o Terceiro Reich, a Segunda Guerra Mundial, a Guerra Fria... e quase toda a História do século XX.

2 Comentários:

Anonymous Anônimo disse:

A arte como substituta do nazismo. Um coração artístico não saberia ser maquiavélico, concordamos. A vitória da sutileza de um artista sobre o terrorismo de um governante...Teria sido muito bom...
Ótimo texto!

2/25/2007 3:25 PM  
Blogger Renan Prestes disse:

muito bom como literatura... ingenuo como analise polico historica.... mas talvez seja a grande vantagem da literatura... pode ser ingenua a vontade...

4/21/2008 11:28 AM  

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