10.3.07

Resposta da Aline ao Desafio XIX

Fado Tropical

“Les français expliquent même ce qu’ils sont incapables de ressentir, les brésiliens ressentent même ce qu’ils sont incapables d’expliquer.”




“Mamãe, a senhora conhece algum fado?”

A mãe de Adeline não esperava a pergunta. Sua reação foi virar a página do caderno de política e dizer, em tom definitivo, “não”.

O problema é que Adeline conhecia a mãe há dezesseis anos, e portanto não se deixava vencer facilmente. “É para o liceu, mamãe. Vai, você deve conhecer alguém que tenha um disco de fado.”

“Não, não conheço. Pergunte ao seu pai.”

“Ele vai passar o dia todo em entrevistas de emprego. Não vai dar tempo.”

“Você deixa os trabalhos pra em cima da hora... já tentou a Internet?”

“O único site que eu achei tava com os links quebrados.”

“Tentou achar uma partitura na biblioteca?”

“Mamãe, é domingo à tarde em período de provas. Todo mundo deve ter saído da praia e ido pra lá.”

A mãe de Adeline também conhecia a filha há dezesseis anos, logo sabia o quão insistente a garota podia ser. Desistiu de ler o jornal e deu um longo trago no cigarro. “Por que você cismou com isso, afinal?”

A menina sorriu. Sabia quando podia cantar vitória. “É pro liceu, já disse. A gente tem que fazer um trabalho sobre as diferentes culturas que influenciaram na criação da identidade nacional.”

“Pensei que você já tivesse feito isso no primário.”

“Naquela época era só colar as penas no cocar do indiozinho, mamãe.”

A mãe balança a cabeça. “Certo. E você vai falar dos portugueses.”

“É que esse ano é o bicentenário da Guerra da Península”, disse a garota, agitando no ar um exemplar caindo aos pedaços de Histoire de France-Brèsil, volume quatro. “Eu achei que seria legal.”

“E por que precisa ter um fado?”

“Apresentação conta ponto.”

“Leve bolinhos de bacalhau pro professor.”

“A Anne-Marie já tá levando tapioca. Vai parecer que eu copiei.”

Suspiros de mãe e filha. A menina põs-se a bater com a ponta de um dos pés no chão, enquanto sua mãe fumava para ajudar a pensar. “O que você já tem?”

A menina deixa o livro depenado em cima da mesa e abre o caderno de anotações de História, tentando entender a própria barafunda de letras. “Já li tudo que havia para ler sobre Napoleão, sobre o tratado de Fontainebleu, sobre a invasão de Lisboa, sobre a prisão da corte e a execução de Dom João, sobre a guerra Franco-Espanhola pelas Américas, sobre—”

“Chega, chega, já entendi.”

“—Mas tem umas coisas que eu ainda não entendo. Por exemplo: por que diabos Dom João foi insistir em ficar em Lisboa? Sabia que os ingleses tinha até um pacto de proteger a fuga de toda a corte portuguesa pra França-Brasil?”

“Na época era só Brasil.”

“Ou isso.”

“Bom, convenhamos, isso seria um tanto covarde da parte de Dom João.”

“Covarde? E entregar todo o Império Português de mão beijada é o quê?”

“Naqueles tempos as pessoas valorizavam mais o conceito de honra, chérie. E ele provavelmente esperava que seus amiguinhos ingleses desse um jeito no problema.” A mãe de Adeline não gostava de ingleses.

A menina anotou rapidamente o que a mãe disse, ainda que insatisfeita com a explicação. “Outra coisa. O exército francês já não tinha desistido da América do Sul? Por que abrir mão de metade do Canadá para disputar o Brasil com os espanhóis?”

“Oras, mas essa é muito fácil. Já viu o clima do Canadá?” A mãe de Adeline também não gostava muito de canadenses.

“Mas o tratado de Fontainebleu dizia que as colônias portuguesas na América ficariam—”

“Com quem fosse mais forte. Napoleão não ia simplesmente seguir um tratado. Guerra é guerra, e eles estavam por cima, de qualquer forma. Olhe em volta: um país sem neve, sem desastres naturais, com água potável pra dar e vender, praticamente abandonado pelos portugueses? Por que você acha que a fronteira com Tocantins dá problema até hoje? Os chicanos querem o Atlântico de qualquer maneira.” Acima de tudo, a mãe de Adeline não gostava de espanhóis.

“Eu pensava que fosse por causa do tráfico de drogas, mamãe.”

“Você acredita em tudo que sai nos jornais”, a mulher resmungou, esmagando a guimba de cigarro no cinzeiro. “Olha, já que você está assim tão curiosa com a invasão francesa, por que não tenta escrever uma redação?”

“Mamãe...”

“Não, vai ser divertido. Você é ótima pra inventar histórias, escreva uma em que Dom João foge pro Brasil e os franceses nunca vêm pra cá.” Adeline tinha certeza de que aquilo na voz da mãe era sarcasmo, mas não se importou. O pior de tudo é que a idéia era boa, mas ia exigir ainda mais pesquisa – e o volume quatro de Histoire de France-Brèsil parava na Guerra do Mato Grosso de 1902.

“Tenho que ir na biblioteca, de qualquer jeito.”

“Não, espere”, disse a mãe, levantando e pegando as Pages Jeunes. “No centro da cidade tinha um... ah, aqui: o prédio do Instituto de Estudos Portugueses. Eles tinham uma biblioteca na época em que seu pai estava fazendo mestrado. Melhor pegar aquele ônibus expresso, porque eles fecham às seis.” O pai de Adeline não gostava que ela pegasse o ônibus expresso, por que ele passava bem na avenida onde volta e meia botavam fogo em alguma coisa. A mãe de Adeline, por mais que reclamasse da falta de engajamento da filha, também se preocupava; mas naquela época os estudantes provavelmente estavam pondo fogo nos carros na frente da prefeitura, por causa da crise do Secretário de Segurança.

Adeline não se importava nem um pouco em pegar o ônibus expresso, contanto que isso significasse um boletim impecável. Pegou o caderno de anotações, o passe pro ônibus, deu um beijo na mãe e foi.


O prédio, num sobrado cor-de-vinho-desbotado, era pequeno e tinha cheiro de comida. A comunidade portuguesa costumava fazer uma confraternização ali no almoço de domingo; o almoço já havia acabado, mas alguns gatos pingados ainda ficavam ali petiscando e falando sua língua apressada. O porteiro indicou para Adeline o caminho da biblioteca, sugerindo que ela apertasse o passo.

A biblioteca era minúscula, ocupada quase em sua totalidade pelas estantes cheias até o teto. Adeline perguntou sobre os livros de história contemporânea, explicando rapidamente o objetivo do trabalho. A bibliotecária de rosto redondo lhe indicou uma das últimas fileiras, acrescentando “tens coisa de uma hora” num sussurro com sotaque carregado.

Adeline folheou alguns livros. As guerras foram poucas; não faz sentido lutar quando já não se tem muito. Passou os olhos numa série de revistas sobre o movimento de preservação da história e dos costumes portugueses, e xingou silenciosamente a Anne-Marie enquanto conferia as fotos do livro de receitas de doces do Porto. Seus olhos volta e meia caíam sobre a lombada de uma versão traduzida da Enciclopédia Luso-Brasileira. Tomou nos braços o pesado volume encadernado em couro, abrindo numa página aleatória. Caiu justamente no verbete “Fado”, que continha um breve histórico do ritmo, descrição da indumentária dos fadistas, a diferença entre o Fado de Lisboa e o de Coimbra e um trecho de uma letra famosa.

O parágrafo sobre temas a redirecionou para o verbete “Saudade” – que ela sabia ser uma palavra intraduzível da língua portuguesa, com um significado diferente da nostalgie francesa ou mesmo da soledad espanhola. Algo lhe disse que a resposta de seu trabalho estava ali, naquelas três sílabas; talvez tenha sido a sensação inexplicável em seu peito enquanto lia a história de Portugal contada através da história da palavra saudade, tão intrinsecamente portuguesa e tão secretamente brasileira. Sentiu-se triste, como se lhe faltasse algo que ela não sabia bem o que era; e ainda que não soubesse a razão da súbita vontade de chorar, imaginava que aquele sentimento era comum a seu pai, aos seus avós, à bibliotecária, às pessoas reunidas no salão do andar de baixo.

Quando a moça de rosto redondo veio avisá-la da hora, ela sabia sobre o que escreveria. Sem querer, entendera porque Dom João optara pela morte junto de seu povo. Não fora um ato de bravura; não, pelo contrário, foi pelo medo imenso daquilo que sentiria estando longe de sua terra, sem saber ao certo quando (ou mesmo se) voltaria. A última questão que faltava responder, ela teria que inventar sozinha. Como seria um Brasil sem as tropas de Napoleão? Ninguém sabia. Mas ela arriscava que fosse uma terra com mais poetas e menos mestres, mais sonhadores e menos filósofos. Um país mais doce, embora mais ingênuo; mais intenso, embora mais vulnerável. Mais amado, embora mais sofrido.



Fato Histórico Alterado: Em 1807, encurralado pelo exército de Napoleão, Dom João VI recusa a proposta inglesa de fuga para o Brasil e permanece em Lisboa. Com isso, Napoleão toma Portugal e divide com a coroa espanhola todas as colônias portuguesas, de acordo com o Tratado de Fontainebleu (que realmente existiu, mas nunca pôde ser cumprido).

4 Comentários:

Blogger Jéssica disse:

hahahhaha
adorei o blog!
um jeito legal de relatar fatos historios...
=D

Bjusss

5/25/2007 12:28 AM  
Anonymous Anônimo disse:

TEXTO IRADOOOOOOOOOOO!
Adorei o final.

6/03/2007 1:00 PM  
Anonymous Anônimo disse:

show seu blog! me visite quando puder ;) beijo

8/04/2007 7:30 AM  
Blogger Two Ways disse:

Nossa, Line, que texto maravilhoso!
amei... fiquei imaginando como teria sido realmente se Dom João tivesse ficado em Lisboa!
Ainda bem que bateu a "covardia" nele...

rsrsrs

8/20/2009 8:46 AM  

Postar um comentário

<< Home