31.5.05

Resposta da Aline ao Desafio IV

A lareira crepitava às suas costas; através da janela, podia ver o pôr-do-sol anunciando a noite. Ele, o valente cavaleiro, prostrava-se aos seus pés com lágrimas nos olhos. A amava dolorosamente, confessava, e não podia mais guardar esse amor dentro de si. Ela, a jovem donzela, não tinha palavras. Correspondia àqueles sentimentos, mas a Razão insistia em lhe dizer que o romance dos dois era impossível, inaceitável. Foi o que disse ao rapaz, acrescentando que deveria esquecê-la. Ele balançou a cabeça, incrédulo. Como poderia esquecer o alimento de sua alma, a Luz de sua malograda vida? Num gesto impulsivo, tomou-a nos braços. A dama tentou se desvencilhar... mas sua luta tornou-se uma carícia tão logo os lábios dele tocaram suavemente os seus. Um calafrio percorreu sua espinha com aquele levíssimo roçar de rostos. Com relutância, ele se afastou. Olharam-se mais uma vez - ele com ânsia, ela com súplica - e, num ato de coragem, entregaram-se à paixão num beijo profundo e cheio de ardor.

Corta.

O diretor ainda se aproximava e meu colega já reclamava em voz alta que o refletor atrás de mim o estava deixando cego. Eu preferia pensar no que havia de errado conosco, e não com o cenário. Talvez minha atuação estivesse muito contida - embora na verdade eu achasse que ele é que estivesse um tanto over, especialmente quando cai de joelhos, mas não era eu quem ia me atrever a criticá-lo. Aliso a frente do vestido, ponho as mãos na cintura, assumo uma expressão de resignação submissa (cuidadosamente estudada ao longo da carreira) e pergunto ao diretor o que faltava.

Ele, como sempre, não oferece uma resposta direta ou prática. Prefere repassar todo o background dos personagens: como eles são, o que pretendem, o que os motiva, como devem agir. (Mal sabe ele que eu entendo a situação da tal donzela melhor do que ninguém.) Aceno com um suspiro, girando os ombros e retomando minha posição inicial.

E quando bate a claquete, me pego pensando no quanto toda aquela situação refletia minha vida.

Lá vamos nós de novo. Sim, tenho certeza de que esse ajoelhar está over. Sigamos em frente. Minha fala, silêncio, a fala dele - o jeito como ele franze as sobrancelhas me lembra aquela piada do-- Corta. Desculpem. Confesso, estava distraída. Não admito em voz alta, mas sei bem que a culpa é toda do meu subconsciente. Volta o diretor. Volta a posição de cabeça baixa. Vem a bronca, que eu já tenho quase de cor.

Alguém sugere que façamos um rápido intervalo. Todos concordamos. Sentada no antigo banco, símbolo de tempos mais elegantes, finjo folhear o script enquanto meus pensamentos vagueiam sem direção. Bonita, famosa, inteligente, com uma confortável conta bancária... solteira. Namorados? Houve alguns. Nenhum deu certo. Alguns se mostraram indignos da minha companhia, outros simplesmente foram embora em busca de outras nobres donzelas de terras distantes. E havia ainda aqueles para quem não soube nem explicar bem o porquê. Só sabia que não ia funcionar. Alguma coisa não batia - talvez fosse comigo, talvez com eles, talvez com a situação toda.

Vem uma senhora de quem sequer sei o nome. Sorrio distraída, e ela enche meu nariz de pó. Ajeita alguns cachos do meu cabelo, afofa minhas mangas, recolhe a bolsa de maquiagem e sai. Vamos voltar a filmar.

O diretor propôe que comecemos do momento do abraço. Concordamos, nos posicionamos. Gravando. Ele vem. Secretamente começamos nossa contagem: dois segundos para o abraço. Três segundos para o primeiro beijo. Três, cretino, não quatro. Ok, encurtamos para dois o tempo do olhar. Por favor, vamos acabar de uma vez com isso. Quero ir pra casa. Segundo beijo - agora, ele me puxa mais perto, minha mão vai para o seu cabelo, e corta.

Ainda não foi dessa vez.

Cansada, volto meu olhar para a lareira cenográfica e a tela azul para a qual dá vista nossa janela. Quantas vezes mais terei que repetir essa cena de beijo, até que a direção fique satisfeita?

Até que eu fique satisfeita?

Dessa vez não faço poses treinadas enquanto o diretor reclama. Mal presto atenção. Já sei qual é o meu erro. Olho de novo pela janela, e dessa vez consigo enxergar a vermelhidão do céu e a esfera flamejante sumindo atrás de uma montanha. Volto a olhar para o diretor. Lhe digo que estou pronta - e dessa vez darei tudo de mim.

Luz, câmera, ação. Aquele take seria o definitivo.

3 Comentários:

Blogger Mariana disse:

Puta que o pariu, fizeste uma pérola da metalinguagem, mana cinzenta!

O melhor em tua história é o jeito que o desenrolar da gravação reflete a vida da atriz, sempre insatisfeita em seus relacionamentos, assim como nos beijos da cena. Aliás, gostei mto dela e tenho quase certeza de q ela gosta do colega. XD

E devo dizer q a parada de não mostrar o beijo real foi foda! XD

Bjos bjos bjos!

5/31/2005 1:21 AM  
Blogger MôNiCa disse:

O q mais me chamou atenção nesse txt é q vc não descreveu o beijo ideal!!! Isso foi mágico! Dá uma idéia de que vc realmente não precisa descrevê-lo, deixa simplesmente para o leitor imaginar a cena...
Final maravilhoso...deixa tudo no ar...ah! e espero q a triz fique com o ator, viu?
Mil bjinhos!

6/05/2005 3:20 PM  
Blogger Paty disse:

Isso é a Carrie Fischer com o Harrison Ford versão medieval, não é? :D Muito bem sacado o estilo metalingüístico, com o beijo não plenamente realizado dos personagens como metáfora para a paixão dos atores. Gosto do jeito como o pensamento da atriz vai ganhando forma, como ela vai se dando conta do que está sentindo enquanto grava a fatídica cena. E há um tom descontraído apesar da leve melancolia da moça.

O parágrafo final é a apoteose, tanto me fez pensar "ah,agora ela entrou no clima da personagem" como "opa, agora ela admitiu que gosta dele e vai beijar o cara de verdade!". Metalinguagem again, com classe e estilo. E o beijo ficou subtendido, belo truque estilístico!

6/24/2005 1:58 AM  

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