31.7.05

Resposta da Aline ao Desafio VI

Etapas


Você observa sua própria imagem no espelho mais uma vez. Tem feito isso toda manhã, desde o início do mês; desde que se deu conta de que os dias de juventude tola e inconseqüente estavam contados.

Segue sempre o mesmo ritual: sai da cama ainda sonolenta, cruza o quarto e se posta na frente do espelho belle époque (herdado da avó). O olhar ainda distraído de quem mal saiu dos braços de Morfeu ganha um aspecto quase sério; você reclama do comprimento dos cabelos. Longos demais, você diz, pouco práticos, difíceis de controlar, fazem calor. "Pareço uma crente. Ou pior, uma Barbie." Sim, todos esses anos lendo revistas de mulherzinha lhe fizeram acreditar que cabelos longos são infantis demais, um resquício de imagem impregnado no cérebro das princesas de contos-de-fada. Para você, e os modismos do centro da cidade reforçam a idéia, uma mulher adulta tem que usar um corte moderno, curto, feito à navalha afiada, repicado, irregular (sem franja - em você não fica bem, parece uma Paquita). E então você decide passar no salão amanhã mesmo e dar adeus à cabeleira. Mas antes, você pensa enquanto brinca com uma mecha dourada, umas fotos para guardar de lembrança. Afinal, levou tempo para ele chegar onde está. E esse corte até que fica bem em você, tem um certo romantismo de outros tempos.

Já faz um mês que você repete essa mesma contradição à frente do espelho. Mas você se perdoa: ainda há tempo. Sem perceber, está adiando um pouquinho a inevitável - e ansiosamente aguardada - despedida.

Então você esquece os cabelos (por hora). E se pergunta se o rosto não anda meio inchado. Seu próprio sorriso denuncia a mentira: você sempre teve traços arredondados, aquelas bochechinhas coradas que as tias adoram apertar até hoje (um ultraje, na sua opinião). Você sabe que isso também vai mudar agora. O rosto de criança vai afinar, aquelas últimas espinhas insistentes vão desistir (ainda que seus hormônios continuem em polvorosa), e você finalmente vai ganhar o jeito de mulher a que sempre aspirou. E você vai além - franze a testa, imaginando onde vão ficar as marcas; já consegue até ver os pezinhos de galinha, as olheiras das noites em claro.

Mas seus olhos ganham um brilho novo, inacreditável, a cada vez que você pensa no que o futuro guarda.

E você deixa as mudanças do rosto de lado, enquanto suas mãos verificam o formato dos seios nus. Não aumentaram um grama, mas você tem certeza absoluta de que eles estão mais pesados, cheios, bonitos. Há algo de sacro na imagem do espelho, com a luz suave e amarelada da janela a contornando enquanto você explora seu corpo, imaginando, sorrindo ao ver este preguiçoso presente enfim tornando-se passado.

Você não tem medo de virar essa página no livro da sua vida (e foram tão poucas páginas viradas até agora!). Você sabe que os próximos capítulos hão de ser mais longos, mais difíceis de ler - mais cruéis, às vezes. E você tem medo; sim, como todas as outras antes de você tiveram. Mas seria simples demais continuar como estava, simples demais e frustrante demais. Você já tinha vivido toda aquela etapa - e assim são as fases da vida, um dia acabam, e você muda. Você aproveitou aquela fase ao máximo, agora era hora de enfrentar o novo. Hora de se despedir de tudo o que ainda lhe restava da infância: os traços, a distração, a preguiça, a displicência, a irresponsabilidade. E hora de dar um adeus especial àquela liberdade total e irrestrita de quem não entendia como um ser humano podia dedicar a outro todo o seu tempo, sua preocupação e seu amor.

E enquanto acaricia o ventre que ainda nem ameaça despontar, você sabe que deixa tudo isso pra trás de bom grado. O futuro, você pensa com o sorriso mais lindo do mundo, promete ser melhor do que você imagina.

1 Comentários:

Blogger Paty disse:

A maternidade como mote para a despedida da infância, idéia genial! Assim como a construção da personagem, desvelada aos poucos, como numa conversa com o leitor, de forma a torná-la irresistivelmente simpática. Sério, como desgostar de alguém que tem o senso crítico de saber que não fica bem de franja? (junto-me a ela, por sinal :D)

Mas digressiono. De início pensei ser uma jovem de vinte e poucos com nostalgia da infância, depois achei que era uma garota no início da adolescência, mais adiante pensei numa mulher de trinta fazendo o tal balanço dda vida. Demorou para cair a ficha! (Até porque provavelmente estava babando no texto e não ouvi a parte das "noites em claro", que mataria a charada). Ao final, quando tudo se esclarece, fica uma sensação boa. Taí, é um texto feliz, um dos mais felizes que você já fez! :)

8/06/2005 12:25 AM  

Postar um comentário

<< Home